Rodson Ricardo do Nascimento
Introdução
Que o cachorro é o melhor amigo do homem, todos sabem; mas que um membro da espécie canina quase foi canonizado é um mistério que poucos conhecem. Estamos falando de São Guinefort, um cachorro galgo inglês que viveu no século XIII na França. Além de ser uma parte fascinante da tradição medieval, a ideia de um cão ser santificado tem grande apelo para aqueles que pensam que um animal de estimação leal é digno de tal honra… e é uma fonte de diversão para aqueles que pensam o contrário.
Sobre os galgos ingleses
Os galgos são uma raça fascinante com uma história rica, e a análise de DNA continua a revelar pistas sobre a sua exata origem, algo que ainda permanece em mistério. Durante séculos, os galgos ingleses foram temas populares na arte por causa de sua estatura elegante e de sua associação à nobreza. Os galgos são a raça canina sobrevivente que aparece com mais frequência na heráldica. Alguns dos monarcas mais famosos da Inglaterra eram proprietários de galgos, incluindo Henrique VIII, Elizabeth I e a Rainha Vitória. Um deles esteve presente na coroação da rainha Elizabeth II, e é apresentado em uma moeda da Royal Mint.
Os galgos desfrutavam de um status especial em partes da Europa medieval, com o privilégio de propriedade reservado exclusivamente para a aristocracia e penalidades para plebeus que ousassem possuir um. Esses cães eram tão valorizados que matar um galgo era punível com a morte durante o reinado do rei Hywel Dda no País de Gales do século X. Acredita-se que os galgos sejam a primeira raça canina mencionada na literatura inglesa no livro “Contos de Cantuária” (The Canterbury Tales); esta seria a raça do único cachorro mencionado pelo nome na Bíblia (King James Version) e a raça que Shakespeare usou com mais frequência em suas peças.
Os cães e as religiões
Os cães têm desempenhado um papel na religião, mitos, contos e lendas de muitas culturas. Na mitologia, os cães costumam servir como animais de estimação ou como cães de guarda. Muitas vezes eles são protetores de locais sagrados. Os cães são muitas vezes relacionados à vida após a morte. Histórias de cães guardando os portões do submundo são recorrentes nas mitologias indoeuropeias. É comum mitos de cães que atuam como guardiões do portal do mundo dos mortos. Alguns estudiosos, como o historiador francês Julien d’ Huy, sugerem uma correlação entre o registro mitológico das culturas e o registro genético e fóssil relacionado à domesticação do cão. Outros associam as imagens de cães sagrados a estrela Sirius, ou Alfa do Cão Maior (Alpha Canis Majoris) na constelação do Cão Maio (Canis Majoris), que pode ser vista em qualquer parte da terra.
Na tradição chinesa, o cachorro é um dos 12 animais que compõem a astrologia e o segundo dia do Ano Novo Chinês é considerado o aniversário de todos os cães; logo, os chineses geralmente cuidam de ser gentis com os cães nesse dia. Por causa disso, na China, Coreia e Japão, os cães são vistos como bons protetores. No Antigo Egito os cachorros eram associados a Anúbis, o deus com cabeça de chacal do submundo dos mortos. Anúbis era o deus responsável pela mumificação e, durante o processo, o sumo sacerdote usava uma máscara do deus Chacal. Às vezes, ao longo de seu período de uso, as catacumbas Anubieion em Saqqara viram o enterro de cães. Os egípcios tinham canópolis, cemitérios dedicados ao enterros dos seus cães mumificados.
Na mitologia grega os cães estavam associados aos deuses Artemis e Ares. O mais famoso desses animais sagrados era Cerberus, um cão de guarda de três cabeças e cauda de dragão que guarda os portões do Hades, o mundo dos mortos. Tamanha era a presença dos cães na mitologia grega que três das 88 constelações da astronomia ocidental também representam cães: 1) Canis Major (o “Cachorrão”, cuja estrela mais brilhante, Sirius, também é chamada de Estrela do Cão); 2) Canis Minor (“o cachorrinho”) e Canes Venatici (“os cães de caça”).
Os cães também ocupam um lugar especial na mitologia hindu. O deus da morte, Yama, possui dois cães de guarda que possuem quatro olhos. Dizem que eles vigiam os portões de naraka, o inferno védico. Cães são encontrados dentro e fora de templos e existem mitos que associam cães ao céu ou ao paraíso hindu. Por isso, entre muitos hindus, existe a crença comum de que cuidar ou adotar cães também pode abrir o caminho para o céu.
Já na mitologia babilônica, os cães eram o símbolo de Ninisina, a deusa da cura e da medicina, e seus adoradores frequentemente dedicavam pequenos modelos de cães sentados a ela. Há um templo em Isin, na Mesopotâmia, que se chama algo como “casa de cachorro”. Mais de 30 enterros de cães, inúmeras esculturas de cães e desenhos de cães foram descobertos por arqueólogos em templos mesopotâmicos.
Na mitologia persa, dois cães de quatro olhos guardam a Ponte Chibvat, que separa os vivos dos mortos. Na mitologia nórdica, há um cão sangrento de quatro olhos chamado Garmr guarda Helheim, o mundo dos mortos. Na mitologia galesa, Annwn, é guardado por um cachorro sagrado, Cwn Annwn. No Zoroastrismo, o cão é considerado uma criatura especialmente benéfica, limpa e justa, que deve ser alimentada e cuidada. O cachorro é elogiado pelo trabalho útil que realiza na casa, mas também é visto como tendo virtudes espirituais especiais. Os cães estão associados a Yama, que guarda os portões da vida após a morte com seus cães, assim como no hinduísmo. Por isso, acredita-se, também, que tenha uma conexão especial com a vida após a morte: cães são tradicionalmente alimentados em comemoração aos mortos. O zoroastrismo possui inúmeras regras de conduta que garantem o bem estar e o cuidado dos cães. Após morrerem, os cães recebem algumas cerimônias funerárias análogas às dos humanos.
Os cães no monoteísmo
Judaísmo
Há controvérsia entre as religiões monoteístas sobre o status dos cães. A Lei rabínica não incentiva a manutenção de cães como animais de estimação. Fontes bíblicas judaicas e rabínicas incluem inúmeras referências que associam cães com violência e impureza e desaprovam ter cães como animais de estimação ou mantê-los em casa. Os cães são retratados negativamente tanto na Bíblia Hebraica quanto no Talmude, onde são mais associados à violência e impureza. Essa visão negativa dos cães também é encontrada no Talmud, que descreve as pessoas que criam cães como amaldiçoadas!
O Misneh Torá afirma que os cães devem ser acorrentados porque são conhecidos por causar danos com frequência. O Shulchan Aruch afirma que apenas cães maus devem ser amarrados e acorrentados. O rabino e talmudista do século 18, Jacob Emden, permitia cães por razões econômicas ou de segurança, mas afirmou que ter um cachorro apenas por prazer era “exatamente o comportamento dos incircuncisos”.
Um exemplo da relação negativa do judaísmo rabínico como os cães aconteceu em julho de 2019, quando todos os rabinos sefaraditas da cidade israelense de Elad assinaram um decreto proibindo cães da cidade, com a justificativa de que “conforme explicado no Talmude e no Rambam, quem cria um cachorro é amaldiçoado”.
Islamismo
A visão sobre cães no Islã é mista, com algumas escolas de pensamento jurídico vendo-os como impuros. Embora alguns juristas sunitas permitam o comércio e a manutenção de cães como animais de estimação, a maioria dos juristas muçulmanos, sunitas e xiitas, considera os cachorros como ritualmente impuros.
Há uma série de tradições sobre Maomé (Hadiths) que afirma que a atitude dele sobre cachorros, exceto como ajudantes na caça, pastoreio e proteção doméstica, anulava uma parte das boas ações de um muçulmano. Por outro lado, ele defendia a gentileza com cães e outros animais. Por isso, é incomum que os muçulmanos praticantes tenham cães como animais de estimação.
Na Grã-Bretanha, onde a presença islâmica é cada vez maior, os cães farejadores da polícia são usados com cuidado e não têm permissão para tocar nos passageiros; em vez disso, eles só podem tocar em suas bagagens. Esses cães policias são obrigados a usar botas de couro sempre que entram e revistam mesquitas ou casas muçulmanas.
Cristianismo
No cristianismo a visão é diferente. Especificamente nas igrejas católicas os cães representam exemplos de fidelidade. Se o cachorro já foi considerado ritualmente impuro pelos israelitas, esse tabu foi eliminado na época do Livro de Tobit, do século II a.C. Quando o autor narra Tobias partindo para uma longa jornada, ele descreve o cachorro de estimação de Tobias saindo do lar judeu para acompanhá-lo na aventura, presumivelmente como companheiro e co-guardião do anjo Rafael (Tobias 6:2; 11:4).
No mundo grecorromano os cães frequentemente sentavam-se embaixo das mesas e comiam restos de comida que caíam no chão. Também no Novo Testamento, a mulher siro-fenícia fala sobre os cães de mesa: “Sim, Senhor, mas até os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa dos seus donos” (Mateus 15:27).
Alguns antigos gregos e romanos construíram túmulos ou ergueram lápides com epitáfios eloquentes para seus animais de estimação falecidos. Isso mostra que os donos valorizavam seus animais de estimação – com várias inscrições até mesmo descrevendo os cães como membros da família.
Mais que isso: os cães também preencheram o interessante papel de médicos no mundo grecorromano. Autores antigos notaram, por exemplo, que o cachorro sabe que deve elevar uma perna machucada, seguindo o que Hipócrates prescreveu. Juntamente com outras evidências, o antigo observador viu que o cão sabe quais plantas comer como remédio para induzir o vômito se tiver comido algo que incomoda seu estômago, que o cão sabe remover corpos estranhos, como espinhos, e que o cão sabe lamber suas feridas para garantir que elas permaneçam limpas, entendendo que feridas limpas cicatrizam mais rapidamente.
No papel de médico do reino animal, os cães aparecem no culto de Asclépio, o deus grego da medicina. Cães sagrados, vivendo nos templos do deus da medicina, lambiam as feridas dos visitantes. Suas línguas supostamente acalmavam e curavam. Essa compreensão dos cães como médicos é importante para a Passagem do Homem Rico e Lázaro em Lucas 16:19–31. Nessa passagem o Evangelho, os cães lambem as feridas de Lázaro. Vendo os cães como curandeiros, podemos ver que essa foi uma ação benevolente. Essa passagem foi interpretada pela Igreja Antiga como a correção da interpretação anterior dos cães como personagens malévolos.
O ícone de São Cristóvão é uma das imagens mais surpreendentes encontradas na tradição ortodoxa oriental. A iconografia ortodoxa de São Cristóvão o apresenta como um cinocéfalo guerreiro, um homem com cabeça de cachorro de Lycea. Às vezes, ele também é de tamanho gigantesco. Segundo a tradição, ele era um soldado, de origem cananeia, levado do outro lado do mundo que se converteu e foi martirizado pelo império romano no século 3. Por todas as dificuldades que apresenta, o ícone chegou a ser proscrito no século XVIII por Moscou.
Na Igreja Católica Romana, a festa de São Cristóvão foi totalmente suprimida com a modernização do Vaticano II, embora ele continue a ser um dos santos mais populares do catolicismo – com sua imagem adornando o painel de carros em todo o mundo. Ele é o padroeiro dos viajantes e motoristas. No folclore cristão medieval, um cachorro preto geralmente protegia as igrejas cristãs e seus cemitérios de sacrilégios. No catolicismo os cães também estão associados a muitos santos.
A iconografia de São Domingos inclui um cachorro, depois que a mãe do santo sonhou com um cachorro saindo de seu ventre e engravidando logo depois disso. Como consequência, a Ordem Dominicana, usa informalmente, um cachorro preto e branco. Isso decorre de um trocadilho latino: embora o nome da ordem seja na verdade Frades Pregadores (Ordo Praedicatórum, “Ordem dos pregadores”), geralmente é chamada de Ordem Dominicana; e Domini canes em latim significa “Os cachorros do Senhor”.
A Igreja Católica Romana reconhece São Roque (1295 AD -1327 DC), o santo padroeiro das doenças e dos cachorros. Ele nasceu em Montpellier, então fronteira França/Itália, em 1295, filho de um fidalgo e governador da cidade. Sua mãe tentou sem sucesso dar à luz por muitos anos, mas ela orou à Virgem Maria para ter um filho, e Roche foi concebido. Seu nascimento foi, portanto, visto como um milagre e ele tinha a marca de nascença de uma cruz em seu peito, que crescia conforme ele crescia. Sua mãe era uma mulher piedosa que levava uma vida santa e jejuava regularmente, e o jovem Roque seguiu lealmente seu exemplo de ascetismo.
Quando Roque tinha vinte anos, seus pais morreram e ele herdou o título e a riqueza de seu pai, mas deu tudo aos pobres e, seguindo o exemplo de São Francisco de Assis, levou uma vida ascética, cuidando dos pobres e dos doentes. Ele partiu para Roma e administrou os doentes nos hospitais de lá e nas cidades vizinhas. Infelizmente, enquanto cuidava de pessoas com peste ele próprio contraiu a doença e ficou muito doente. Roque foi então expulso da cidade e foi morar na floresta, onde tirava água de uma nascente; mas não tinha comida. Como nenhum humano se aproximava dele, ele teria morrido se não fosse por um cachorro que lhe trazia pão todos os dias e lambia suas feridas. Eventualmente, Roque se recuperou e continuou seu trabalho com os pobres e doentes. Ele morreu lá em 16 de agosto de 1327 e foi canonizado em 1590. O dia da festa de São Roque, em 16 de agosto, costuma ser celebrado com um serviço de bênção de cães para agradecer a companhia de cães que sustentam pessoas idosas, doentes, cegas, surdas e solitárias. Na Bolívia é conhecido como o “aniversário de todos os cães”. Em 2017, um convento franciscano adotou um cão da raça schnauzer, com o nome de “Frei Carmelo”. As fotos do frei Carmelo vestido com um hábito viralizaram na internet. Mas nada se compara a São Guinefort.
A história de São Guinefort
O registro mais antigo e que temos sobre São Guinefort vem de seu principal inimigo, Stephen de Bourbon (1180–1261). Bourbon foi um inquisidor católico romano durante o estágio inicial da Inquisição e contou a história em sua obra escrita “Sobre a Superstição” (De Supersticione) que seria usada em sermões denunciando heresia e idolatria.
A história começou em uma área da França perto da cidade de Châtillon-sur-Chalaronne, presumivelmente por volta do século XII ou XIII. Um nobre deixou seu castelo um dia, confiando o cuidado de seu filho pequeno a seu cão leal, Guinefort. Ao voltar para casa, o homem encontrou o berço virado, o bebê desaparecido e a boca do galgo coberta de sangue. Supondo que o cachorro tivesse matado a criança, o nobre sacou sua espada e matou Guinefort em um ataque de raiva. Momentos depois, o homem descobriu o bebê a salvo atrás do berço e uma víbora morta que estava ensanguentada por causa das mordidas de cachorro. Guinefort arriscou sua vida atacando a cobra venenosa, protegendo a criança de um destino venenoso. O nobre enterrou Guinefort, empilhou pedras para marcar o local e plantou árvores em homenagem ao cachorro.

A história do “galgo martirizado” se espalhou pela região e os moradores locais declararam Guinefort santo, rezando a ele quando precisavam. O processo de declarar um santo foi menos estruturado durante os primeiros séculos da Igreja, e não era incomum que as regiões nomeassem seus próprios santos sem a permissão do Vaticano.
Nos séculos 12 e 13, o inusitado processo de canonização foi formalizado e, em 1234 – na época em que Estêvão de Bourbon descobriu o galgo santo – o papa Gregório IX tonou lei da Igreja que a Santa Sé tinha autoridade exclusiva para nomear alguém como santo. Assim que Estêvão de Bourbon descobriu o canino santo, ele desenterrou e destruiu os ossos do cachorro e queimou as árvores que serviam como santuário de São Guinefort.
Estêvão de Bourbon não disciplinou os habitantes locais por sua heresia de venerar um cachorro como santo, nem puniu as mães por realizarem rituais. Ele, no entanto, destruiu o santuário de árvores de Guinefort e aprovou um decreto proibindo qualquer pessoa de buscar a ajuda do cão sagrado no Bosque de São Guinefort, com pena de apreensão e venda de seus bens para qualquer um que violasse a proibição.
Apesar disso, no relatório escrito por Bourbon, ele descreve o assassinato de Guinefort como “matar injustamente um cachorro tão útil” e o “ato nobre e sua morte inocente” do cachorro… uma quantidade surpreendente de simpatia do inquisidor. Parece que nem Estêvão de Bourbon ficou totalmente imune aos encantos de Guinefort!
O inquisidor deixou a diocese de Lyon acreditando ter pensado que resolveu a questão do galgo sagrado, mas o amor do povo local por seu canino divino aparentemente superou a proibição de buscar a ajuda do cachorro santo. As pessoas continuaram a visitar os bosques em homenagem a São Guinefort durante séculos.
Mais de 500 anos depois, em 1826, um cura de Châtillon-sur-Chalaronne mencionou brevemente em uma carta ao bispo que as pessoas visitavam a floresta em homenagem a um santo chamado Guinefort mas ele não sabia mais nada sobre o assunto. Por volta de 1879, um folclorista chamado Vayssière realizou pesquisas sobre St. Guinefort na região. Ele descobriu milhares de galhos de árvores nodosos na floresta, e todos os indivíduos que entrevistou confirmaram que São Guinefort era um cachorro. Vayssière também foi informado de que o galgo se chamava Guinefort porque constantemente abanava o rabo (“guignier” significa “fazer um sinal” em francês antigo). Na segunda metade do século 20, foi relatado a um médico que a avó de alguém havia visitado o Bosque de São Guinefort na década de 1940 para curar uma doença infantil.
Nenhuma pintura ou estátua de São Guinefort, o galgo, existe desde a Idade Média. Pinturas de ícones às vezes identificadas como St. Guinefort estão, na verdade, retratando São Cristóvão. Existem várias teorias sobre por que São Cristóvão às vezes era representado com a cabeça de um cachorro, sendo uma delas que isso se devia a uma tradução incorreta da palavra “cananeu” séculos atrás. Estas imagens de São Cristóvão não estão relacionadas com São Guinefort.
Essa é a história de Guinefort, o galgo que se tornou santo por seu heroísmo e fidelidade. Em 2020, um cachorro no Brasil foi aclamado como herói depois de ser mordido repetidamente por uma jararaca venenosa enquanto protegia uma criança da cobra mortal. Enquanto a lealdade que os cães demonstram para com seus donos é celebrada em todo o mundo, a lealdade que essas pessoas da região de Châtillon-sur-Chalaronne demonstraram para com seu amado St. Guinefort foi impressionante… mantendo sua lenda e rito de cura vivos por séculos, apesar de condenação e ameaça de multas severas. E em uma ironia do destino, o inquisidor da Igreja que tentou fazer o santo galgo desaparecer acabou consagrando a lenda de São Guinefort para sempre. Sem a obra escrita de Stephen de Bourbon condenando o santo galgo, a lenda de St. Guinefort provavelmente teria desaparecido na história. Parece que Guinefort foi o último a ladrar!
Os cachorros também vão para o céu?
O comediante norte-americano William Will Rogers (1879-1935) dizia que “Se não há cachorros no céu, quando eu morrer quero ir para onde eles forem.” A verdade é que existem alguns tópicos que nem as Escrituras e nem a Tradição abordam claramente. Uma pergunta que é cada vez mais feita (e discutida) entre os cristãos é se os animais vão para o céu quando morrem ou serão ressuscitados corporalmente. O catolicismo romano, seguindo Tomás de Aquino, tende a negar essa possibilidade. Já nas demais tradições cristãs a questão permanece em aberto.
Os animais (assim como o restante da natureza criada, exceto os humanos) não têm alma e não pecam, portanto, também não precisam de redenção. Essa visão se consolidou com o humanismo. Desde então, a maior parte dos cristãos ocidentais tende a ver a salvação como uma questão apenas humana ou individual. Mas há outra tradição que nos afirma que os animais (na verdade, o mundo inteiro e toda a criação) sofreram os efeitos da queda e, por isso, participarão da volta de Cristo e do reinado eterno do Reino de Deus. A corrupção que eles enfrentam por existirem neste mundo caído será lavada na recriação do mundo em Jesus Cristo. Essa é a visão da ortodoxia oriental. São João de Damasco diz que “a terra que será a posse do santo é imortal”. (Exposição da Fé Ortodoxa, Capítulo X).
Na época da Reforma, até Martinho Lutero (pai do protestantismo) acreditava que os animais estariam no céu, baseando seu pensamento nos “textos de restauração” de Atos 3,21 e Romanos 9, 18-22. John Wesley (fundador do Metodismo), acreditava que os animais podem entrar no céu. Mas foi no anglicanismo que esse debate se desenvolveu.
O teólogo e escritor anglicano CS Lewis abordou com imaginação a questão da imortalidade animal em seu livro “O Problema do sofrimento” (The Problem of Pain). CS Lewis dá aos amantes dos animais motivos para ter esperança. Ele discute a imortalidade animal no capítulo 9 de seu livro, no qual ele discute as questões teológicas envolvidas no sofrimento animal. Lewis questiona como podemos reconciliar a justiça de Deus com a dor de criaturas inocentes que não podem se beneficiar nem compreender seu sofrimento, e não encontra resposta neste mundo. Portanto, ele se aventura a considerar o mistério da imortalidade animal e como isso pode funcionar com os mamíferos, e em especial, os animais domésticos.
Recentemente o Papa Francisco, que escolheu seu nome em homenagem ao santo padroeiro dos animais, afirmou na encíclica Laudato Si’ (importante documento oficial da Igreja Católica Romana) que “a vida eterna será uma experiência compartilhada de admiração, na qual cada criatura, resplandecentemente transfigurada, ocupará o seu devido lugar…”. Embora não esteja explicitamente claro, esta foi uma indicação bem-vinda para muitos católicos romanos do líder de sua igreja de que eles se reunirão com seus amados animais de estimação na vida após a morte. Isso foi especialmente significativo, visto que um papa anterior, Pio IX, adotou uma visão negativa ao declarar que os animais não tinham alma e chegou ao ponto de afirmar que não tinham consciência. Felizmente para nossos amigos de quatro patas, estudos científicos mostraram que os cães têm um nível de sensibilidade comparável ao de uma criança humana. Mas será que os animais têm alma e podem se juntar a nós no céu? Uma resposta comum entre os teólogos cristãos é “Não sabemos”. Independentemente do que se pensa sobre animais na vida após a morte ou um cachorro sendo santificado, a seguinte história de Guinefort, o galgo, ilustra a abnegação heroica dos cães domésticos e serve como um conto de advertência contra ações impetuosas.