Rodson Ricardo do Nascimento
Introdução
Somos todos bípedes. Ser humano é possuir e usar dois pés. Vida é movimento. E são os pés quem nos permite a locomoção, ou seja, caminhar, correr ou pular. Segundo o anatomista inglês Hugh Aldersey- Williams, no seu livro, “Anatomias: uma história cultural do corpo humano”, o pé em movimento é uma das marcas do ser humano: “A pegada é a primeira prova concreta da presença de outro ser humano” (p. 273). Através de uma pegada os cientistas podem descobrir informações sobre a anatomia, fisiologia, história e cultura de diferentes grupos humanos.
Deveríamos conhecer mais sobre nossos pés. Anatomicamente, o pé é “a extremidade do membro inferior abaixo da articulação do tornozelo e terminada pelos artelhos, assentada por completo no chão, e que permite a postura vertical e o andar”. Mas o pé é muito mais que isso.
Os pés na história
Na história da evolução, o pé humano é a parte mais jovem do nosso esqueleto que permite o bipedalismo devido ao desenvolvimento dos arcos longitudinal e transversal do pé, com um primeiro raio estável e paralelo, embora isso sacrifique a capacidade de preensão.
Existe uma hipótese evolucionista que associa o bipedismo à linhagem humana. Para evitar que os bebês chorassem em ambientes perigosos com animais selvagens, as mães tinham que acalmá-los com sons e cantos que provavelmente levavam à linguagem. O bipedismo também teria provocado mudanças no nosso cérebro. A necessidade do sincronismo da marcha teria gerado o crescimento do telencéfalo e o desenvolvimento de mãos especializadas que poderiam produzir ferramentas para pesca e caça.
Os pés na medicina
O pé é uma das partes mais complexas do corpo. É composto de 26 ossos conectados por sete nervos, muitas articulações, músculos, tendões e ligamentos. O pé e seus ossos podem ser divididos em três partes anatômicas e funcionais: A parte posterior do pé (retropé): tálus e calcâneo; A parte média do pé (mediopé): navicular, cuboide e cuneiformes e a parte anterior do pé (antepé): metatarsais e falanges.
A região é suscetível a muitos tipos de estresse. Problemas nos pés podem causar dor, inflamação ou lesão e resultar em movimento e mobilidade limitada. No Antigo Egito existia profissionais especialistas no cuidado dos pés, conforme representado por esculturas em baixo relevo na entrada do túmulo de Ankmahor de cerca de 2400 aC. Na Grécia, o Pai da Medicina, Hipócrates, descreveu o tratamento de calos e calosidades reduzindo fisicamente a pele dura e removendo a causa com o uso de bisturis.
A podologia é um ramo da saúde dedicado ao estudo, diagnóstico e tratamento de distúrbios do pé e tornozelo. Até a virada do século 20, os podólogos eram médicos licenciados de forma independente, separados do restante da medicina organizada. Os pés são importantes na prevenção de doenças como a diabetes e a má circulação venosa.
Um dia médio de caminhada traz uma força igual a várias centenas de toneladas para baixo nos pés. Isso ajuda a explicar por que os pés estão mais sujeitos a lesões do que qualquer outra parte do corpo. A dor no pé geralmente é causada pela função inadequada do pé. Existem muitos tipos de problemas nos pés que afetam os calcanhares, dedos, nervos, tendões, ligamentos e articulações do pé. Um dos mais comuns é o “esporão de calcanhar”.
Na Medicina Tradicional Chinesa (MTC), a condição dos pés é crucial para a saúde geral e é considerada um subsistema relacionado a outras partes e órgãos do corpo. Grande parte dos ossos do corpo está nos pés, e o desalinhamento desses ossos pode causar problemas no resto do corpo. Um problema no pé pode levar a dores no quadril, joelho e lombar, que podem se mover para o ombro e pescoço e até causar dor de cabeça.
Os desalinhamentos também podem causar problemas nos meridianos de acupuntura que passam pelo pé. Quando um osso desalinhado bloqueia os meridianos de acupuntura, os órgãos ou glândulas relacionados podem ter problemas.
O pé possui muitos receptores nervosos que enviam informações importantes para o sistema nervoso central. Essa comunicação é usada para rastrear onde partes específicas do corpo estão a cada momento e para determinar em que direção elas vão, com que rapidez se movem e quanta pressão recebem. À medida que caminhamos, cada articulação do pé envia informações ao sistema nervoso para que este possa regular as funções dos nossos músculos.
A MTC defende que a caminhada é naturalmente terapêutica. Quando os pés e o corpo estão alinhados, caminhar é o melhor exercício para manter os pés saudáveis. Contribui para a saúde geral, melhorando a circulação, contribuindo para o controle de peso e promovendo o bem-estar geral.
Na MTC o pé é dividido em seções de energia vital, de modo que a atenção a uma área do pé dará tratamento terapêutico à parte correspondente do corpo. Existem relações zonais entre o corpo e os pés. Dez zonas verticais do corpo estão conectadas com as dos pés. Os nervos sensoriais dos órgãos internos que se espalham pelo corpo estão principalmente reunidos em torno das plantas dos pés.
Essa é base da reflexologia, uma forma especializada de massagem chinesa que remonta ao século IV a.C., concentra-se nessas áreas para estimular as funções do corpo, eliminar toxinas, melhorar a circulação e acalmar os nervos. Segundo a MTC, a reflexologia também pode ser usada para tratar doenças dos órgãos internos, aliviar o desconforto interno e relaxar o corpo.
Existem mais de 25 condições nos pés, incluindo artrite, joanetes, pé de atleta, dedos sobrepostos, calos, unhas encravadas e esporões de calcanhar. Esses sintomas, bem como áreas sensíveis e bloqueios, são evidências de um distúrbio no corpo nas áreas correspondentes. A remoção de um bloqueio no pé melhora o suprimento de sangue e nervos, bem como o fluxo de energia para o corpo. A reflexologia aborda o problema dos pés, devolvendo a função do corpo à sua homeostase.
O princípio da massagem nos pés de reflexologia afirma que existem reflexos na parte inferior do pé que estão diretamente relacionados a órgãos, glândulas e outras partes do corpo. Os praticantes encontrarão os reflexos ativos e usarão estimulação semelhante à acupressão nesses pontos, o que, por sua vez, ajuda esses órgãos, glândulas e partes do corpo a funcionarem melhor. O desalinhamento dos ossos do pé faz com que esses reflexos estejam presentes, levando a pontos sensíveis ou pontos-gatilho. Quando os ossos estão em alinhamento adequado, os reflexos na sola do pé serão estimulados enquanto se anda, como uma massagem reflexológica automática nos pés.
A maioria das massagens de reflexologia nos pés começa com um escalda-pés. Os pés são mergulhados em um banho medicinal aquecido, com sal e uma mistura de 28 tipos de ervas chinesas. Após esta limpeza, aplica-se loção para uma massagem de pressão profunda nos pés, tornozelos e panturrilhas. Seguindo as leis do yin e yang, muitas vezes, as massagens dos homens começam no pé direito, as mulheres no esquerdo. Por outros padrões, todas as massagens começam no pé esquerdo por causa de sua conexão com o coração. O “banho de pés” da medicina tradicional chinesa combinado com massagem de acupontos é amplamente utilizado para o tratamento da neuropatia periférica diabética, especialmente em idosos.
O pé contém meridianos relacionados ao Baço, Fígado, Estômago, Rim, Bexiga e Vesícula Biliar. Como todos os meridianos de acupuntura do corpo começam ou terminam nos pés ou nas mãos, a saúde dos pés é de importância crucial para o equilíbrio do sistema de energia da acupuntura. O equilíbrio adequado apoiará um qi forte e uma saúde vibrante. Desta forma, a saúde dos pés é a base sobre a qual repousa o bem-estar de todo o corpo.
Os pés na religião
Mas não são apenas as ciências biológicas que estudam os pés humanos. As tradições religiosas também dedicam um lugar especial ao pé. Existem diversos mitos, metáforas e símbolos para os pés humanos. Com a ajuda dos pés, podemos nos afastar ou nos aproximar de algo, não apenas simbolicamente, mas também de fato. Por isso, os pés ora representam a fertilidade, o erotismo e a sexualidade, ora são um símbolo de respeito, reverência e obediência.
Na cultura hindu, e em toda a Ásia, deve-se tirar os sapatos quando se entra em um templo. Sentado ali, você nunca aponta os pés para o altar ou para outros fiéis, especialmente os idosos. Os pés das pessoas são considerados baixos. Na verdade, um dos maiores insultos que você pode fazer é jogar sapatos em alguém. Isso também vale para o Islã.
E, no entanto, os pés de Deus são especiais. Os “pés de Deus” são frequentemente chamados de “pés de lótus” e, em alguns templos, até mesmo um pequeno conjunto de sapatos simbólicos representando os pés da Deidade é tocado na cabeça dos adoradores como uma bênção. Este implemento de bênção é chamado shathari. Os adoradores até bebem a água de banho de pés de Deus. Isso é chamado charanamrita.
A base para o simbolismo dos pés remonta à concepção védica do universo como o corpo de Deus. Assim como um corpo tem partes altas e baixas, este universo tem lugares altos e baixos, lugares puros e impuros. Para cima é alto, para baixo é baixo. Os brâmanes nasceram da cabeça do Deus. Os pés tocam o chão, que é baixo, e assim quando você entra em um templo você deixa sua parte baixa na porta.
Por isso, tiramos nossa parte impura, nossos pés, simbolizados por deixar nossos sapatos na porta ao entrarmos no espaço sagrado. Deixamos simbolicamente nosso lado materialista na porta quando entramos no espaço espiritual. A veneração dos pés de gurus ou divindades é comum na Índia antiga, colocando a cabeça ou sob seus pés como um gesto ritual que significa uma obediência e submissão.
No budismo destacam-se as “As pegadas de Buda” (Buddhapada), ícones budistas com a forma de uma impressão do pé de do Buda. Essas pegadas abundam em toda a Ásia, datando de vários períodos. Só no Japão existem mais de 3.000 delas. Para esclarecer: “uma pegada do Buda é uma imagem côncava de seu pé (ou pés), supostamente deixado por ele na terra para marcar propositalmente sua passagem por um determinado local”. As imagens dos pés do Buda são imagens convexas que representam as próprias solas de seus pés, com todas as suas características”. Geralmente elas são esculpidas na rocha.

Os pés são símbolos de nossa fragilidade. A expressão “pés de barros”, usada na nossa cultura como sinônimo de “calcanhar de Aquiles”, ou seja, de ponto fraco ou fraqueza. A origem dessa expressão vem do Antigo Testamento, de um sonho do rei Nabucodonosor II, a que se segue uma interpretação feita pelo profeta Daniel (2, 31-35). Desde então, “ter os pés de barro”, é usado até hoje para indicar uma pessoa com defeito de caráter, numa lembrança que os pés estão irremediavelmente enraizados na terra.
Para os cristãos lavar e ungir os pés é um ato de humildade e amor. No cristianismo existe o ritual do lava-pés na quinta-feira anterior ao Domingo de Páscoa, na Quinta-feira Santa. O ritual do lava-pés era praticado pela Igreja primitiva, antes de receber a Eucaristia, e foi registrado pelo apologista cristão primitivo Tertuliano. O rito do lava-pés encontra suas raízes nas escrituras, onde Jesus diz a seus seguidores “que lavem os pés uns dos outros” (João 13, 1-17). Após a morte dos apóstolos, durante a Era Apostólica, a prática continuou. A Igreja Ortodoxa Grega, chegou a incluiu o lava-pés entre os sacramentos, embora não fosse praticado com tanta frequência. O lava-pés é libertação do narcisismo, da arrogância, da presunção, das gratificações e aparências. É momento de total esvaziamento de nós mesmos, de nossa autossuficiência e da elevação dos outros, como imagem de Deus.