Rodson Ricardo do Nascimento
1. Introdução
Placebo é considerado o deus das lacunas da medicina moderna. Por placebo entende-se “uma substância inócua e/ou tratamento inerte, cuja ação teoricamente não deveria produzir qualquer reação, mas, quando associada a fatores psicológicos, acaba produzindo efeitos de melhoria clínica em alguns indivíduos, por consequência da crença do paciente de que o tratamento aplicado a ele será eficaz”. Será que existe placebo na bíblia? Certamente, Jesus, o divino Filho de Deus, não precisa de suportes físicos para fazer milagres. Em muitos casos, Jesus apenas falou, e a cura seguiu (por exemplo, Mateus 15, 28; Lucas 17, 12-14). No entanto, em três casos, Jesus usou sua saliva no processo de cura.
2. Cura com saliva
Perto de Decápolis, algumas pessoas trouxeram para Jesus um surdo que mal falava. Jesus curou o homem, é claro, mas de uma maneira interessante: “Jesus pôs os dedos nos ouvidos do homem. ENTÃO CUSPIU E TOCOU NA LÍNGUA DO HOMEM” (Marcos 7,33). Mais tarde, na cidade de Betsaida, Jesus curou um cego. Novamente, o milagre foi precedido por cuspir: “ELE CUSPIU NOS OLHOS DO HOMEM E IMPÔS-LHE AS MÃOS” (Marcos 8, 23). Para curar um cego de nascença, Jesus “cuspiu no chão, fez um pouco de lama com a saliva e aplicou nos olhos do homem” (João 9,6).
De todos esses casos, a cura da cegueira congênita registrada por Marcos é o mais interessante por alguns motivos: 1) Este é o único lugar onde Jesus cura uma pessoa em um processo que apresenta dois estágios; 2) A primeira parte do milagre aconteceu “fora da cidade” (Marcos 8, 22). Depois que Jesus “cuspiu em [ou, nos] seus olhos e impôs as mãos sobre ele, perguntou-lhe se via alguma coisa” (Marcos 8,23). O homem responde que só consegue ver de forma incompleta: “Vejo os homens como árvores, andando” (Marcos 8, 24). O Senhor então impõe as mãos sobre ele novamente e então ele é completamente curado de sua cegueira.
Esse relato também é interessante porque é apenas uma das três vezes em que Jesus usa a saliva em uma cura. Os outros dois são Marcos 7, 31-37 e João 9,6. Não apenas o uso de saliva é raro em tais curas, mas tal relato em Marcos 8 é a única vez que é dito que Cristo cuspiu no rosto/olhos de uma pessoa. Esses fatos levantam uma série de questões. Por que Jesus usou saliva nesse milagre? Por que ele fez isso fora da cidade? Por que o milagre aconteceu em duas fases? Como um observador do primeiro século poderia ver tal coisa?
3. As crenças em torno da saliva
Uma das teorias é que Jesus usou a saliva como placebo! Como se tratava de uma cegueira congênita, Jesus teria usado esse expediente para aumentar a fé do homem de Betsaida, cidade tida na bíblia como incrédula: “era provavelmente necessário sublinhar a façanha representada pela cura de uma cegueira congênita tornando o procedimento de cura mais complicado do que habitualmente. Mas como a noção de comprimido era desconhecida na época, é um placebo em forma de emplasto que Jesus utiliza e aplica conscienciosamente nos olhos do paciente […]” (Patrick Lemoire. O mistério da autocura em medicina: o efeito placebo. Lisboa: Piaget, 1996, p.30).
Assim, uma possível razão para Jesus usar sua saliva tem a ver com as crenças da época. Entre os gregos, cuspir era visto como um meio de afastar os maus espíritos ou apaziguar os deuses. Era uma prática mágica. Poderia ajudar na cura de certas doenças, pois os deuses poderiam ser conquistados por essa ação. O ato de cuspir para trazer boa sorte pode envolver cuspir no “seio” da pessoa.
O escritor romano Plínio, o Velho, escrevendo no primeiro século, disse que a saliva podia ajudar a curar certas doenças de pele. Plínio também lista outras doenças que a saliva poderia ajudar a curar, incluindo epilepsia, dor no pescoço e dormência no membro. De particular interesse é a cura de certas condições oculares com saliva. Plínio também diz que a saliva poderia auxiliar nessa área. A saliva, se aplicada nos olhos pela manhã, poderia atuar como uma pomada.
Alguns rabinos judeus consideravam a saliva um tratamento válido para a cegueira. Visto que as pessoas daquela época tinham uma visão elevada das propriedades curativas da saliva, Jesus teria usado o cuspe para comunicar Sua intenção de curar. Aqueles que estavam sendo curados teriam naturalmente interpretado o gesto de Jesus como um sinal de que logo seriam curados. Marcos é explícito sobre isso: a maior necessidade de cada um dos curados era a necessidade de aumentar a sua fé. Jesus reconheceu essa necessidade espiritual e ofereceu uma ação física como meio de aumentar suas expectativas e concentrar sua fé Nele.
É preciso notar que o próprio texto sugere que não foi a saliva que curou o homem. Jesus cuspiu uma vez, mas colocou as mãos no homem por duas vezes. Parece que a saliva não era para ser vista como algo que curava o homem, mas sim o toque do Senhor. Foi somente após a imposição das mãos do Senhor pela segunda vez que a cura ocorreu. O que também é interessante é que Jesus não explica o uso da saliva ao homem ou aos discípulos. O contexto deve determinar o significado da saliva. E isso permanece um mistério para nós.
4. A saliva como símbolo
Outros hermeneutas sugerem que o uso de saliva por Jesus seria uma declaração teológica, ou seja, tem um sentido simbólico e espiritual. A saliva era considerada um contaminante e Jesus a usa como fonte de bênção. Só nas mãos de uma pessoa especial tal coisa seria possível. É semelhante ao toque de Jesus em um leproso. Tal contato não poluiu Jesus, mas promoveu a cura. Era um sinal de sua divindade.
É possível que o uso da lama por Jesus em João 9 fosse um paralelo com a criação original do homem por Deus: “O SENHOR Deus formou o homem do pó da terra” (Gênesis 2, 7). Em outras palavras, Jesus mostrou Seu poder como Criador ao imitar a criação original do homem: Ele usou o “pó da terra” para dar uma nova visão ao cego de nascença. O poder criativo do milagre de Jesus não passou despercebido ao homem que foi curado: “Desde o início do mundo, nunca se ouviu falar de alguém que tenha aberto os olhos a um cego de nascença. Se este não fosse de Deus, nada poderia fazer” (João 9, 32-33).
A cura do cego em Marcos seria uma lição para os discípulos. A cura em dois estágios é uma parábola dos discípulos em Marcos. Eles são “cegos” sobre Jesus. Eles têm apenas uma compreensão parcial Daquele em quem acreditaram. Eles também passarão por uma “cura” em dois estágios em sua compreensão Dele. O homem é curado em etapas. É inaceitável sugerir que Jesus foi incapaz de curar o homem completamente na primeira vez por causa da dificuldade da cura. Como Deus, Jesus não precisou de duas tentativas para completar a cura.
Também é inaceitável sugerir que Jesus não pôde curar o homem completamente na primeira vez por causa da falta de fé do homem. Durante o ministério de Jesus, o Senhor curou um grande número de pessoas. Certamente alguns deles tiveram dúvidas, mas isso nunca foi um problema no processo de cicatrização. Os que não estão cegos desde a nascença, no entanto, precisavam ver com mais acuidade. Nesse sentido, sua visão é apenas parcial. Eles são como o cego quando Jesus colocou as mãos sobre ele pela primeira vez. Eles precisam ter uma “visão” sobre outra coisa. Eles não entenderam o tipo de Messias que Jesus é. Na verdade, eles precisam ver e só verão isso com clareza mais tarde. A cura diz respeito à missão de Jesus, e eles chegarão a essa visão em etapas…