No início era o crânio

Rodson Ricardo do Nascimento

Introdução

A anatomia é uma das disciplinas fundamentais para a área da saúde. Graças a ela sabemos que cada elemento do corpo tem sua própria forma e função, fica em seu local específico e interage com o todo. A anatomia também é uma das disciplinas mais antigas. A sua história é a história do acúmulo gradual de conhecimento por meio de dissecação e observação cuidadosa. A interação mútua de corte e observação revela órgãos como o coração e o cérebro, estruturas como os músculos e tendões, vasos e nervos, tecidos e células etc. Mas quando é que todo esse conhecimento teve início? Certamente não foi no renascimento como muitos autores dão a entender.

As origens da anatomia estão na pré-história. Como especialista em religião e teologia, defendo que as origens do conhecimento anatômico tenham aparecido juntamente com nossos primeiros antepassados, na pré-história. Surgiram num momento em que não existia uma separação clara entre magia, religião e ciência. Por exemplo, a arqueologia encontrou evidências da prática da trepanação no período paleolítico superior ou mesolítico (por volta de 10.000 a.C.) muito tempo antes das primeiras civilizações.

A mãe de todas as cirurgias

A trepanação é uma técnica que consiste na perfuração do crânio humano. Essa perfuração intencional cria um buraco no cosso que expõe não raramente a dura-máter. A trepanação ainda é usada por neurocirurgiões, na maioria das vezes, para tratar problemas de saúde relacionados a doenças intracranianas ou liberar o acúmulo de sangue pressionado devido a uma lesão. Talvez seja a técnica cirúrgica mais antiga da humanidade e mostra que os primeiros seres humanos já possuíam um conhecimento de anatomia. As maiores evidências arqueológicas dessa prática estão na forma de pinturas rupestres e restos humanos. Existem milhares desses crânios trepanados oriundos de quase todos os continentes. O mais impressionante é que alguns desse crânios demonstram que cerca de 40% das pessoas submetidas ao procedimento sobreviveram, a desepito da precariedade da assepsia e dos próprios intrumentos da época.

Religião ou ciência?

Por que os nossos ancestrais praticavam a trepanação? Bem… não existe consenso sobre isso. Existem duas teorias sobre sua origem. A primeira é que ela seria parte de um ritual mágico ou religioso semelhante a um exorcismo. Dessa forma, os buracos nos crânios seriam realizados em pessoas que se comportavam de maneira considerada anormal a fim de liberar os que se acreditava serem espíritos malignos. Os defensores dessa teoria alegam que ela está de acordo com a “teoria do culto do crânio” no neolítico. A preservação ou veneração do crânio (ou de parte dele) dos mortos está ligada ao culto aos antepassados e à ideia de que o espírito habita preferenciamente a cabeça do falecido. A prática de seleção e conservação de crânios humanos é encontrada com bastante regularidade a partir da última fase do Paleolítico Superior, o Maddaleniano, e depois desenvolvida durante o período Mesolítico Europeu (X-VII Milénio). Nas evidências arqueológicas analisadas até agora, temos que o tratamento ritual do crânio, aliado ao cuidado no descarte dos corpos, a presença de ferramentas, alimentos e objetos não instrumentais como flores ou chifres de animais, a aplicação de agentes como o ocre vermelho e as conchas, mostra a atenção dada aos mortos desde a mais tenra idade. Tais práticas começaram com o homem de Neandertal e se consolidaram com o homem de Cro-Magnon (Noss & Grandaard, 2023). Segundo essa teoria, o osso trepanado seria guardado pelos povos pré-históricos como um amuleto para afastar os maus espíritos.

A segunda teoria afirma que a trepanação era uma prática cirúrgica primitiva de emergência após ferimentos na cabeça. O objetivo seria remover pedaços de osso quebrado de crânios fraturados e limpar o sangue que muitas vezes se acumulava sob o crânio após um trauma encefálico. Acidentes de caça, quedas, animais selvagens e armas como porretes ou lanças poderiam causar tais ferimentos. Como evidência, os defensores dessa hipótese alegam que as trepanações parecem ter sido mais comuns em áreas onde eram usadas armas que poderiam produzir fraturas no crânio. Há também indícios de que, em algum ponto, pode ter ocorrido provável experimentação em animais.

Dessa forma a trepanação pré-histórica poderia ter sido utilizada para a cura de problemas de saúde que hoje conhecemos como epilepsia, ferimentos na cabeça, distúrbios mentais e fortes dores de cabeça. Finalmente, alega-se que o perímetro do buraco em alguns crânios neolíticos trepanados foi arredondado pelo crescimento de novo tecido ósseo, indicando que o paciente sobrevivera à operação.

Considerações finais

Intervenções cirúrgicas complicadas no crânio humano ou manifestações religiosas? Talvez ambas. O fato é que difícil para muitos acreditarem que há 7.000 anos as pessoas realizavam procedimentos complexos, como cirurgias cerebrais. Mas o fato é que isso realmente aconteceu. E isso demonstrava um razoável conhecimento de anatomia humana. Nada mais distante da trepanação que o cenário animalesco de filmes como “A guerra do fogo”.

Referências

NOSS, David S. GRANGAARD, Blake R. Religião em culturas pré-históricas e primais In História das religiões mundiais. Petrópolis: Vozes, 20023, p. 19-61

Deixe um comentário