Rodson Ricardo do Nascimento
Introdução
Anatomia é uma disciplina fascinante. Além de sua importância científica para a área médica e da saúde em geral, ela também é uma fonte inesgotável de cultura. Um exemplo disso é a nomenclatura de algumas áreas cerebrais. Se fôssemos traduzir literalmente as partes do sistema límbico, diríamos que a área responsável pela memória é o “corno de Amon”, o nome antigo para o “cavalo marinho” (hippocampus). Mas porque uma área tão importante do nosso cérebro tem o nome dos chifres de uma deidade egípcia? Ora, a explicação para isso evoca uma época em que os anatomistas eram pessoas muito cultas.
A anatomia moderna é fruto, principalmente, da fusão de duas grandes tradições espirituais: a hebraica e a greco-romana. Os anatomistas da renascença eram cristãos apaixonados pela mitologia antiga. Por causa disso, a neuroanatomia possui diversas metáforas que relacionam os deuses e o cérebro. Um deles, Cornu Ammonis, ou “Chifre de Amon”, em português. O Chifre de Amon é um dos três nomes para a parte conhecida hoje como hipocampo. O hipocampo recebeu o nome do italiano Júlio César Arantius (1530 – 1589) no final do século XVI.
Mas seu primeiro nome foi uma homenagem a um dos mais poderosos deuses do Egito Antigo. Seu nome significa “o oculto”. Originalmente ele era a personificação dos ventos, mas, com o tempo, em associação com o deus Rá, o mais antigo dentre os deuses, ele passou a ser adorado como criador da vida e pai de todos os deuses. Sob o nome de Amon-Rá, Amon passa a ser reverenciado sob aspectos criadores e solares.
A religião egípcia era zooantropomórfica, ou seja, os seus deuses tinham aspectos que misturam o humano e o animal. Amon era representado como um carneiro com cinco cifres. Um elemento importante do culto de Amon era seu Oráculo, o qual era consultado por muitos nomes importantes da antiguidade como Alexandre e Cesar. Os sacerdotes de Amon passaram a ter tanto poder que foram alvo da reforma religiosa do faraó Akhenatom. Quando Akhenaton morreu em 1336 a.C., seu filho Tutankhaten assumiu o trono, mudou seu nome para Tutancamon (1336 – 1327 a.C.) em homenagem a Amon. Assim o status do deus com chifres de carneiro foi restaurado nos séculos 14 a 13 a.C. Ok… Mas por que a associação de Amon com os chifres?
O poder do chifre
Para os povos antigos o chifre era um símbolo de poder. Alexandre Magno, que era devoto do deus egípcio, às vezes usava os “chifres de seu divino pai Amon” em ocasiões públicas. Posteriormente, Amon foi adotado pelos gregos como epíteto de Zeus e posteriormente incorporado pelos romanos como Júpiter.
Os anatomistas da Escola Renascentista de Pádua usavam alegorias mitológicas para nomear estruturas anatômicas. Essa tradição continuou com os anatomistas franceses do Iluminismo (Garengeot em 1742 e Flurant em 1752) que nomearam a porção interna em forma de curva do lobo temporal de chifre de Amon. Essa não é a única referência religiosa ao hipocampo. A comissura do hipocampo relacionada, juntamente com a crura do fórnice, foi chamada de “psaltério” ou “lyra Davidis” devido à sua forma de harpa. É uma ironia que essa história esteja sendo esquecida…