Rodson Ricardo do Nascimento
Introdução
No dia 27 de setembro comemora-se o Dia Nacional do Transplante de Órgãos. Sabe-se que o transplante é um procedimento cirúrgico que consiste na reposição de um órgão (coração, pulmão, rim, pâncreas, fígado, perna) ou tecido (medula óssea, ossos, córneas) de uma pessoa doente (receptor), por outro órgão ou tecido normal de um doador vivo ou morto. Contudo, poucos sabem que essa data está associada a vida dos Santos Cosme e Damião. Mas qual a relação entre eles e a medicina, a farmácia e, principalmente, a cirurgia ortopédica?
Muito além dos doces infantis
No Brasil, os Santos Cosme e Damião são associados a distribuição de doces infantis por fieis de religiões afro-brasileiras, em especial, a umbanda. Mas esse sincretismo não faz jus à importância desses dois santos. Nascidos na Arábia, Cosme e Damião viveram em Egeas, uma pequena comunidade entre a Turquia e a Síria. Eles eram irmãos gêmeos e estudaram medicina em Antióquia onde a praticaram entre os pobres de sua comunidade, sem receberem qualquer dinheiro em troca. Por não aceitarem pagamento por seus serviços, eram chamados de anargyroi, ou “os sem prata”.
Sob o reinado do imperador Diocleciano (284-305 d.C.), foram apedrejados, condenados e decapitados. Seus corpos foram levados para Cyrrhus, no norte Síria, e então enterrados no local de um Asklepieion, um antigo templo dedicado ao deus grego Asklepios, onde os padres tratavam pacientes por “incubação” ou “sono do templo”.
Após o enterro dos Santos, pacientes foram dormir perto de seu túmulo, em busca de cura semelhante. Lembre-se que os santos médicos eram venerados por toda a cristandade. Durante a Idade Média, seus restos mortais foram dispersos (relíquias), mas sua devoção se espalhou amplamente na Europa: foram particularmente homenageados em Florença pela família Medici, governantes da cidade. De fato, o sobrenome Medici era a palavra latina para médicos. Cosme e Damião estavam especialmente associados à medicina que, na época, envolvia, a farmácia. Eles também foram considerado os padroeiros dos cirurgiões e barbeiros. Existem muitas histórias de curas e prodígios atribuídas a Cosme e Damião. Mas o mais famoso e importante é uma operação cirúrgica conhecida como “O Milagre da Perna Preta”.

O Milagre da Perna Preta
O milagre da perna preta é o primeiro registro de um transplante ortopédico da história. A principal fonte deste história é a Lenda Dourada (do latim, Legenda Aurea) de Jacobus de Voragine, uma coleção de hagiografias fantásticas, que foi provavelmente compilado por volta de 1260 e que se tornou um “best-seller” medieval tardio. Eis a história: Diácono Justiniano, que trabalhou na Basílica de Cosme e Damião em Roma, estava gravemente enfermo por causa de uma perna doente e se encontrava à beira da morte. Ele dirigiu uma oração fervorosa aos seus patronos e caiu em profundo sono na igreja. Cosme e Damião apareceram para ele em um sonho, carregando seus instrumentos cirúrgicos, e amputaram a perna lesionada (por um câncer?), substituindo-a pela perna de um mouro (negro) que havia morrido recentemente. Eles teriam retirado o cadáver da sepultura, ainda fresco, cortado a perna “boa” e a fixaram ao toco de Justiniano. Para tanto, os santos cirurgiões contaram com a ajuda de anjos, que atuaram como uma verdadeira equipe de apoio. Bem, é por isso que eles se tornaram os santos padroeiros dos cirurgiões.

Na maioria das vezes, um santo padroeiro tem uma conexão mórbida com sua doença afiliada, embora o patrocínio possa resultar de atributos físicos ou de um milagre realizado. Nesse caso, Cosme e Damião, são os patronos das lesões, doenças musculoesqueléticas e patologias ortopédicas. Eles são os primeiros da especialidade dos “santos ortopedistas” que incluem jesuítas, como Santo Inácio, que foi pioneiro na cirurgia de correção de deformidades em si mesmo; São Kostka, padroeiro dos ossos quebrados; e Santo Afonso de Ligório, padroeiro das doenças da coluna, pois sofrera uma cifose cervical tão grave que seu queixo chegou a corroer o peito. Além disso, existe outros santos identificados com a área médica como Santa Amalberga e São Roque, conhecidos como patronos das lesões dos membros superiores e inferiores, respectivamente.
A História dos Transplantes
A cirurgia de transplante de órgãos só se tornou uma realidade na segunda metade do século XX. Em 1954 foi realizada a primeira operação de transplante renal nos EUA pelo Dr. Joseph Murray em Boston, Massachusetts. O Brasil foi um dos pioneiros na técnica. Em 1964 foi realizado o primeiro transplante renal. Os programas de transplante dos demais órgãos, porém, sofreram uma estagnação, voltando à atividade por volta de 1980.
No entanto, o transplante de perna continua sendo extremamente complexo. Perceba que qualquer transplante de órgão envolve riscos. O transplante de perna é considerado experimental e, a bem da verdade, teve sucesso clínico limitado até então. Corresponde a uma opção de tratamento experimental para pacientes que perderam ambas as pernas ao nível transfemoral devido à amputação. O transplante de perna transfere a(s) perna(s) de um doador humano falecido para um paciente receptor. Porém, os métodos convencionais de reconstrução das pernas são sempre considerados em primeiro lugar. Atualmente existem muitas próteses sofisticadas que substituem a função básica de uma extremidade inferior. No entanto, substituir as pernas por próteses não proporciona sensação (sensação) ou aparência natural. A cirurgia de transplante de perna pode fornecer ao paciente pernas que, após extensa reabilitação, lhe permitam realizar atividades diárias e, potencialmente, andar sem assistência.
A Iconografia e seu Significado
A iconografia do Milagre de São Cosme e São Damião foi representada pela primeira vez num painel florentino de cerca de 1370. A cor da perna posteriormente atraiu atenção especial. “O milagre dos Santos Não Mercenários” não tem fundamento histórico adequado nos livros das vidas dos Santos nas Igrejas Ortodoxas. A ação focada na substituição da perna afetada por uma de um cadáver doador era desconhecida do Cristianismo oriental. A iconografia dos Santos Médicos Cosme e Damião e as representações artísticas de seus milagres também são fontes importantes para a história da medicina. Na esfera dos santos-médicos, Cosme e Damião apresentam o maior número de representações iconográficas na arte bizantina e pós-bizantina. Na maioria de suas representações, eles usam túnicas longas como uma espécie de manto profissional e carregam instrumentos cirúrgicos e caixas que indicam sua condição de médicos.

Considerações finais
A história dos Santos Cosme e Damião é importante porque, além do pioneirismo do registro da primeira referência a uma cirurgia ortopédica, serviu para estabelecer o ideal do médico como um servidor da humanidade e não como um simples comerciante. Detalhes como a associação entre Asclépio e a antiga prática da incubação (já encontrada no Egito Antigo) mostra uma continuidade de elementos pagãos e cristãos.
Por fim, a referência a perna preta, muitas vezes motivo de zombaria por alguns autores, era um exemplo de que o Cristianismo não considerava as diferenças étnicas como valores absolutos, uma vez que todos somos membros da mesma raça e seres que necessitam dos cuidados divinos.