Ratos, humanos e ratos humanos

Bento J Abreu

Há algumas semanas recebi uma curiosa resposta do editor da revista de onde acabara de submeter um artigo. Por um descuido nosso, não havíamos indicado em letras garrafais que os protocolos internacionais de ética para o uso de animais foram seguidos (trata-se de uma sentença padrão como “we followed the NIH guidelines for animal research“), o que foi certamente observado pela inteligência artificial da revista; muito embora tenhamos acessado sim todos os ítens de um checklist chamado ARRIVE. Obviamente o artigo foi negado; faz parte. Na verdade, quem trabalha com ciência básica já conhece todos os trâmites que envolvem a utilização de modelos experimentais; mas a ausência de uma frase aparentemente simples causou esse desfecho desfavorável.

Como você pode imaginar, quase 90% das pesquisas básicas envolve a utilização de roedores tais como ratos e camundongos. Durante o desenvolvimento do desenho experimental, o qual deve ser avaliado por um comitê de ética em pesquisa animal formada por especialistas da própria instituição e membros da sociedade civil, os pesquisadores seguem o princípio dos 4 Rs: redução, refinamento, substituição (do inglês, replacement) e responsabilidade. Somente pesquisas que atendem as normas do comitê podem ser executadas.

E é justamente na seção de “Materiais e Métodos” de um artigo científico que se encontram informações relacionadas ao uso dos animais. Para facilitar a compreensão do leitor não familiarizado com o tema, citarei apenas informações relacionadas ao uso dos ratos. Bem, tais animais são obtidos de um biotério e dedicados exclusivamente àquela pesquisa. Eles ficam alocados em gaiolas próprias contendo água e ração à vontade em espaços climatizados e com iluminação controlada. Ao final dos experimentos, são eutanasiados por métodos humanizados que garantem mínimo desconforto e sofrimento. Por exemplo, o guia on-line da UNIFESP recomenda que os ratos sejam eutanasiados por meio de uma dose letal de barbitúricos como o Tiopental (40mg/kg pela via injetável), responsável por deprimir o sistema nervoso do animal e, em última instância, causar apneia e parada cardíaca. A partir daí, os pesquisadores podem coletar amostras (de sangue, tecidos etc.) para proceder com as suas análises. Pois bem, assim são conduzidas as pesquisas que buscam avaliar a eficácia de fármacos e fitoterápicos, analisar seus mecanismos de ação e se podem causar efeitos tóxicos ou adversos, por exemplo. As próximas etapas envolveriam avaliar os achados em pesquisas com seres humanos.

Agora vejamos como procedemos com os humanos em estágio de desenvolvimento fetal durante a controversa prática do aborto… Bem, segundo a Nota Técnica Conjunta Nº 2/2024-SAPS/SAES/MS que aborda o chamado aborto legal, quando existem casos de abortamento permitidos por lei, eles aparentemente prescindem de anestesia.

De acordo com o item 3.12 dessa nota, existe a “desnecessidade de anestesia fetal para procedimentos de aborto, tampouco para procedimentos obstétricos (como o parto instrumental) ou para o nascimento (apesar de ser provável a lesão tecidual durante esses processos)“. O texto sugere que existem dúvidas sobre a capacidade do feto perceber sensações dolorosas e emoções após 24 semanas de gestação, embora ele já tenha o coração bastante desenvolvido, se movimente intensamente, tenha olfato e paladar e possa, até mesmo, distinguir as vozes dos pais… Como redigiu certa vez o Dr Hélio Angotti, no feto “estão células, genes, ossos, músculos e, é claro, a capacidade de interagir com o ambiente de diversas formas“. É um óbvio ululante que uma vida repleta de potencialidades está ali…

Pois o item 3.14 dessa nota expressa que existem teorias (sim, teorias!) provenientes de estudos com animais que “sugerem a possibilidade de um estado intrauterino permanente de inconsciência” o que, pasme! sugere que “o feto muito provavelmente não é capaz de sentir dor“. Essa ideia, que não é corroborada por estudos que evidenciam que o ser em desenvolvimento é capaz de sofrer, sentir e perceber tudo a sua volta (VANHATALO e VAN NIEUWENHUIZEN, 2000; MYERS e BULICH, 2004; BRUSSEAU, 2008), seria a premissa que nortearia a prática do aborto (a princípio, somente em casos previstos em lei) em qualquer tempo gestacional. Pois então, muito provavelmente você dirá, acertadamente, que a Nota Técnica do Ministério da Saúde, com apenas 17 referências bibliográficas e sem o devido aprofundamento do debate, não possui nada de técnica e não segue os preceitos básicos de bioética. Fica a impressão de que os ratos são mais reverenciados e protegidos do que os pobres bebês em estágio fetal.

Como esperado, todo esse caso gerou uma enorme repercussão negativa e, aparentemente, o Ministério da Saúde foi obrigado a retroceder, retirando do ar essa suposta “Nota Técnica” (veja íntegra do texto mais abaixo). Veja bem estimado leitor, tratamos de um assunto que não pode ser debatido estritamente sob um olhar ideológico, sem levar em consideração inúmeras outras questões, como morais e éticas. Por exemplo, alguém é capaz de dizer realmente quando começa a vida humana? O feto sofre o mesmo tipo de dor que um animal? O que dizer sobre uma sociedade que aceita assassinar seus filhos no ventre materno sem qualquer anestesia? O que será feito com os restos do bebê já sem vida? Quais são as repercussões físicas e emocionais para a mulher que abortou seu filho? Devemos considerar também questões metafísicas como a existência de uma alma durante a concepção ou ao longo da gestação? São tantas perguntas sem respostas… De todo modo, espero sinceramente que essa discussão conte com a devida participação de toda a sociedade brasileira e que não fique apenas circunscrita a nichos específicos da política e do setor judicário como muitos desejam…

“Onde quer quehaja adoração a animais, ali haverá sacrifício humano” G. K. Chesterton

Referências:

BRUSSEAU, R. ‘Developmental Perspectives: Is the Fetus Conscious?’International Anesthesiology Clinics, 46 (3), 2008, p. 11-23.

MYERS, LB; BULICH, LA. ‘Fetal endoscopic surgery: indications and anaesthetic management’. Best Practice & Research Clinical Anaesthesiology, 18(2), 2004, p. 231-258.

VANHATALO, S; VAN NIEUWENHUIZEN, O. ‘Fetal Pain?’ Brain & Development, 22, 2000, p. 145-150.

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