
Bento J Abreu
A história de Prometeus é bastante utilizada para se fazer inferências acerca da capacidade regenerativa do fígado. Na mitologia grega, esse titã, filho de Ásia e Jápeto, teria criado a raça humana a partir de argila e água juntamente com seu irmão, Epimeteu. Atena, a deusa da sabedoria, teria então introduzido o espírito nessa argila com o seu sopro divino.
Prometeu, cujo nome significa premeditação ou antevisão em grego, teria roubado o fogo de Zeus e dado aos homens, a fim de que se sobressaíssem frente aos demais animais. Furioso, Zeus teria então ordenado que acorrentassem o titã numa rocha no Cáucaso. Além disso, uma águia deveria devorar seu fígado durante o dia. Como era imortal, o órgão de Prometeus se regeneraria à noite para, no dia seguinte, novamente servir de alimento para a ave num ciclo eterno de dor e sofrimento.
É sabido que o fígado possui funções cruciais para a homeostase tais como síntese e armazenamento de substâncias, bem como participa dos processos de desintoxicação e do metabolismo corporal, entre outros. Por se tratar de um órgão vital, possui características próprias que o diferencia do processo de reparo tecidual convencional.
Desse modo, o processo de regeneração do fígado é importante para a restauração de sua arquitetura, tamanho e função após uma lesão parcial e moderada, por exemplo. O primeiro relato de sua capacidade regenerativa data de 1931, quando foi observada a “recuperação” do fígado em ratos após a extração de 70% do órgão (Michalopoulos e DeFrances, 1997).
Na verdade, o fígado não se regenera como pressuposto, mas adota um processo chamado de hiperplasia compensatória a partir do tecido remanescente. Neste, o restante do órgão expande-se para compensar as necessidades metabólicas do organismo (Mao et al., 2014). Em alguns casos como na hepatectomia parcial ou em lesões químicas do fígado, o tecido hepático formado não se assemelha anatomicamente com o tecido original, mas pode ser entendido como uma replicação de hepatócitos que migram para o local danificado sem qualquer ativação de células progenitoras. Para outras lesões químicas, pode haver replicação e ativação de células progenitoras (Mao et al., 2014). Esse processo envolve três fases: iniciação, proliferação e terminação e uma série de citocinas, hormônios e fatores de transformação celular (Tao et al., 2017). Não somente os hepatócitos, mas todas as células do fígado são capazes de proliferarem-se pela hiperplasia, Trata-se de um processo extremamente regulado, ocorrendo até que o fígado atinja valores próximos ao seu peso original. Mais detalhes podem ser observados no trabalho de revisão de Jesus e colegas (2000).
Apesar dessas características regenerativas, as doenças hepáticas representam uma importante causa de morbidade e mortalidade na população geral. É importante ressaltar que transplantes do órgão não são ofertados na quantidade necessária, seja pela falta de doadores, capacitação de profissionais ou de estrutura física adequada para o procedimento. Tal fato demonstra a importância de melhor compreender-sr os mecanismos que modulam a regeneração hepática em determinadas circunstâncias.
E quanto a Prometeus? Bem…Após muitas eras, seria libertado de seu castigo por Hércules, o qual abatera a águia com uma flecha certeira.
Referências:
de Jesus, RP, Waitzberg, DL, Campos, FG. Regeneração hepática: papel dos fatores de crescimento e nutrientes. Rev. Assoc. Med. Bras. vol.46 n.3 São Paulo July/Sept. 2000.
Mao SA, Glorioso JM, Nyberg SL. Liver regeneration. Transl Res. 2014 Apr;163(4):352-62.
Michalopoulos GK, DeFrances MC. Liver regeneration. Science. 1997; 276(5309):60–66.
Tao Y, Wang M, Chen E, Tang H. Liver Regeneration: Analysis of the Main Relevant Signaling Molecules. Mediators Inflamm. 2017;2017:4256352.