Carta para quem entrou numa universidade pública

Ronaldo Angelini

Muito bem, você agora entrou numa universidade pública; talvez até esteja fazendo seu segundo curso de graduação. Então está entre aqueles cerca de 3 a 4% de brasileiros que não pagam pra fazer o ensino superior. Parabéns! Será uma economia e tanto para você e sua família. Pelo que pude pesquisar, um curso particular de Engenharia gira em torno de R$1.000,00. Multiplique isto por 12 (meses) e por 5 (anos) e você terá uma ideia do custo básico total.

Ainda é muitíssimo provável que a universidade pública em que tenhas entrado seja menos pior que suas vizinhas que cobram mensalidades (filantrópicas, privadas, etc…). Esta diferença se dá por vários motivos. O primeiro, mas não o principal, é o fato de que pelo menos 30% dos professores das universidades públicas têm se esforçado para realizar, dentro dos limites financeiros e intelectuais de cada um, pesquisas científicas em suas áreas de concentração. Esta atividade faz com que o professor estude, leia, reflita um pouco mais (sei que isto era pra ser feito sem a pesquisa, mas não é o que ocorre) e até conte com a sua ajuda na pesquisa como orientado. Por isto, é muito provável que as aulas dele sejam mais informativas, ou que ele se encontre mais preparado para responder suas perguntas.

Mas a razão fundamental pela qual a universidade pública é, repito e enfatizo: em geral, menos pior que a paga, é a qualidade do aluno. É, estou falando de você mesmo. Com as honrosas exceções de sempre, as universidades públicas têm maiores relações candidatos/vaga em seus processos de admissão; logo, seus alunos passaram por uma seleção maior e, então na média, estão mais preparados para terem aulas de cálculo, química orgânica, citologia, genética, estatística e congêneres. E aí, o professor pode ser um pouco mais exigente, pois ele não precisa ficar ensinando conta de percentagem, as leis de Mendel, ou ainda que exceção se escreve com “ç” e não com “ss”. Pode parecer bobagem, mas faz uma diferença e tanto para o professor e, consequentemente, para o nível da disciplina. Muita gente duvida da afirmação, mas ela é um fato: é o aluno quem faz a qualidade do curso e da universidade. O professor pode ajudar, mas a qualidade e dedicação do aluno são os pilares da qualidade universitária. Afinal, você não fica mais forte se assiste a competições esportivas. Então, você não vai ficar mais sabido se apenas ouvir o professor e não exercitar seu próprio cérebro, lendo, resolvendo exercícios, fazendo bons seminários, estudando por conta em casa.

Caro aluno, ressalto que não estou a dizer que se você passou num curso com baixa relação candidato / vaga, é porque sua qualidade é baixa. É apenas um fato: a média das notas dos processos seletivos mais concorridos é maior que as dos menos, mas, como diria o Roberto Campos, só os medíocres calculam a média. O que quero dizer é: se seu curso não foi lá muito procurado é por que, na média, há fortes indícios de sua turma estar menos preparada para algumas disciplinas, o que aumenta a sua responsabilidade de estudar com dedicação, pois inevitavelmente o professor abaixará o nível. Mas se você passou num curso disputado, e está se achando, como se dizia no meu tempo, o bonitão da bala-chita, pode pôr suas barbas de molho, pois sua obrigação de estudar só aumenta na mesma proporção que o professor deve puxar pra cima o nível do curso.

Estudar. Estudar. Estudar. Há dois argumentos igualmente importantes que tornam seu estudo um compromisso e um dever. O primeiro é diretamente de seu interesse. Só pra dar dois exemplos que conheço: por ano no Brasil formam-se 10 mil engenheiros e 50 mil bacharéis em direito (que após o exame da OAB tornam-se advogados). Como o país não cresce (ou cresce pouco), onde esta gente toda vai arrumar emprego? Então, é preciso se preparar bem para o próximo vestibular que é o do mercado de trabalho. Para isto há vários caminhos, mas de longe, o mais correto e eu diria até o mais divertido, é o do estudo concentrado e, de preferência, individual. Cuidado com este negócio de estudar em grupo, isto só deve ser feito depois do individual e mesmo assim em véspera de prova, pra tirar dúvidas e dirimir aflições.

Isto não quer dizer que você vai virar um mesquinho de nariz empinado que não conversa com seus colegas e de vez em quando não lhes tira as dúvidas (aliás, ensinar os colegas é uma ótima maneira de testar os próprios conhecimentos). Mas você tem que se ajudar primeiro pra depois ajudar os outros. Eu sei que é difícil saber até que ponto se está sendo egoísta ou não, mas isto faz parte do amadurecimento de nosso caráter. Pratique o seu. Medite sobre ele.

O segundo argumento pelo qual você tem que estudar mais para ter o conhecimento do que simplesmente tirar “cinco-bola” pra passar na disciplina, é o moral. Você e sua família não pagam diretamente pela universidade. Mas ela não é gratuita, sabia? Os impostos de todos os contribuintes custeiam seu curso, incluindo, claro, os impostos que você, seus pais e parentes pagam, mas principalmente os impostos pagos pelas muitas pessoas que não freqüentam a universidade. Compreendes que até a faxineira das salas de aula paga imposto, e que muitos de seus colegas, ainda têm a falta de educação de jogar papel no chão? Não pense que seu curso é mais barato que o dos particulares que apontei atrás. Ele não é.

Como se isso não bastasse, professores, alunos estudiosos, e principalmente os coordenadores de curso, têm que ficar agüentando alguns alunos irresponsáveis que vivem apoquentando todo mundo com mudanças de horários pra que eles possam se formar. Imagine o prejuízo que estes caras não dão pro Estado e consequentemente pro povo. E depois alguns deles reclamam da vida, do “sistema” e dos políticos corruptos. É eu sei… O mesmo pode ser dito para muitos professores, mas a conversa agora é com você.

Por falar nisto, a gente reclama muito dos políticos corruptos. Mas (é quase inacreditável dizer isto em público) há muito aluno que pensa que é esperto porque cola na universidade. E me diga: qual a diferença entre um político que recebe favores por debaixo de pano e um aluno que recebe ou carrega “favores” por debaixo da prova? Eu respondo. A diferença está no cargo. Um é aluno, o outro é político. Entendeu? Por isto, se você quer falar mal dos políticos, olhe pro próprio umbigo, principalmente antes das provas e viva o seu pequeno dilema shakespereano: “Ser ou não ser: eis a questão”.

Você pode me perguntar se o professor não tem a obrigação de fiscalizar a prova. Ele tem. Mas a obrigação principal do professor é ensinar e a sua é aprender. Além disso, você já está com mais de 18 anos, não dá pra ter um pouco de bom senso ou, pra dizer diretamente, vergonha na cara? Se as leis no Brasil fossem mais duras, acredito até que seria possível processar o aluno que cola por “falsidade ideológica”. Mas já viram, né? Provavelmente o advogado do aluno também usaria a velha desculpa do “caixa dois que todo mundo faz….” Tá vendo? Para melhorar o Brasil, é preciso melhorar a si próprio primeiro. Comece estudando pra valer. Como diria o novo ditado das redes “O brasileiro não precisa ser estudado. Ele precisa estudar” (desconheço o autor).

Você deve estar se perguntando: “Mas professor, em geral, nossas bibliotecas estão em frangalhos, a maior parte dos professores não oferecem estágios por que não têm condições de laboratório e a gente tem que trabalhar, etc… Como estudar nestas condições?”

Novamente. Não há desculpas pra não estudar. Pra quem trabalha, compreendo que a vida não é fácil. Mas ela continuará dura depois da universidade se você só passar por ela e não adquirir conhecimento através do estudo. De uma vez por todas: diploma não faz mais diferença nenhuma para quem tem carne, miolo e ossos. É claro, faz diferença pras estatísticas do governo, da universidade, etc..

Também tenho notado uma coisa relativamente comum em quem trabalha e estuda. No local de trabalho ele reclama que tem que estudar e por isto as pessoas têm que ter paciência com seu desempenho aquém do esperado. Na universidade ele, por trabalhar, não tem tempo de estudar. Então, se você tem um emprego e se não podes deixá-lo apenas pra estudar, o que seria o ideal, há de esforçar mais ainda. Eu e outros professores aplaudimos seu esforço, compreendemos a sua batalha, oferecemos nossa ajuda que é o nosso conhecimento, mas não podemos ter pena de você, nem favorecê-lo. Não é nada pessoal, é apenas profissional.

Para você que tem a tranqüilidade de não precisar trabalhar, mas ainda sim vive na corda-bamba, eu gostaria de te dar algumas dicas de “estudo-trabalho”. Comprar livros seria o ideal, apesar de não ser muito barato, mas se você compara com a mensalidade da universidade que você não paga, então é barato sim.

Mas de qualquer forma, na internet você pode acessar periódicos científicos em sites (como www.scielo.org ou o https://clarivate.com/webofsciencegroup/solutions/web-of-science/ ). Também você pode ver o currículo dos seus professores (www.lattes.cnpq.br) e ler o que eles andam publicando. Há ainda a possibilidade de baixar teses que acabaram de ser defendidas (www.capes.gov.br), ler/assistir artigos e vídeos de divulgação científica e se comunicar com as pessoas. Agora até o ChatGPT pode te ajudar a organizar as ideias desconexas de um tópico, ou mesmo para entender um assunto que não ficou muito claro para você durante a aula. Use-o com parcimônia, mas não se deixe escravizar.

Outra coisa é aprender inglês. Pense bem: você teve inglês quatro anos no ensino Fundamental e três no Médio. Deu pra aprender o verbo to be, ok? Então agora é hora de ler em inglês. É imprescindível instruir-se nisto antes de sair da universidade e isto não se faz de uma hora pra outra. Comece já. Digo isto com a maior experiência, pois sofri muito para ler em inglês e depois no meu pós-doutorado tive que contar com a tolerância dos sul-africanos com meu inglês fraquiiiiinho. Olha, aprender outra língua é uma sensação muito gratificante. Há sites de cursos de inglês on-line (fiz um mais recentemente e me ajudou muito). Também é bom ler em inglês e há muitos livres grátis pela internet. É só baixar, pegar o dicionário, ler, anotar e estudar.

Tem mais algumas dicas. Não perca tempo com movimentos estudantis. Existe muita coisa errada nas universidades. Porém lembre-se, que elas não serão arrumadas em quatro, cinco anos e quando você se formar, seu futuro empregador não vai querer saber se você participou do Centro Acadêmico (CA). Ele só quer que você tenha as habilidades que ele exige, e então, conhecimento é fundamental. Pois é, no século passado, perdi meu tempo com estas bobagens estudantis, por isto meu inglês hoje não é tão bom e deixei leituras fundamentais que depois tive que correr atrás. Sei que a experiência é lanterna na popa, ou seja, “só ilumina as águas passadas pelo barco de cada um”, mas fica o meu conselho: entre uma reunião do CA pra organizar um movimento pra pedir desconto no Restaurante Universitário e uma leitura de Dostoievski ou de um Stephen Hawkins, prefira os livros. Não vale deixar o CA de lado pra vadiar e nem desprezar quem gosta de participar do CA. Democracia é assim mesmo, tá bem?

Tenho visto alguns estudantes empolgados com Empresa Júnior e me parecem um ótimo investimento de tempo, desde que abrem as portas para o mercado de trabalho, mostrando a tal da “vida como ela é”, fora da zona de conforto universitária. Talvez valha a pena passar por isto, desde que com responsabilidade, isto é, sem descuidar do currículo básico dos cursos (disciplinas e outras atividades). Outra forma muito boa de crescer, ainda na universidade, é fazer bem e com afinco os estágios e o Trabalho de Conclusão de Curso que os currículos exigem. 

Fico feliz que você tenha chego ao final deste meu longo texto. Não! Não sou o Morpheus. Eu não tenho as pílulas azul e vermelha pra te oferecer, mas tomei a liberdade de ser mais sincero com você do que o usual que vejo por aí. Você não paga pelo estudo, por isto tem que mostrar à que veio. Diploma não é adorno de parede e mesmo que fosse poderia ser roubado. Conhecimento adquirido nunca. Parabéns mais uma vez e boa sorte!

Ronaldo Angelini é professor da UFRN (Natal). Este texto foi escrito originalmente em 2007 e atualizado em 2023.

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