Por que insistir em usar a denominação “Sistema Circulatório”? Uma visão histórica da descoberta do movimento do sangue por Harvey.

Nos primórdios da Anatomia, as principais estruturas estudadas eram justamente os órgãos da cavidade torácica e abdominal e, frequentemente o estudo dos membros, e até mesmo do encéfalo, obtinha papel secundário. Dentre os órgãos que despertava a curiosidade de todos estava o coração. Diversos anatomistas, inclusive o  próprio Aristóteles (384 – 322), destacavam o coração como o principal órgão do corpo. Tais anatomistas eram adeptos do cardiocentrismo – o coração era considerado o mais importante órgão corporal e a sede da alma [provavelmente por considerarem-no como o primeiro órgão a funcionar e o último a “parar”] – e procuravam descrever seu funcionamento.

A teoria predominante na época, concebida por Erasistratus ou Erasístratos (304 – 250 a.C.) – considerado o “Pai da Fisiologia”, – estabeleceu as seguintes ideias: 1) os sistemas venoso e arterial estariam organizados separadamente e não manteriam conexão entre si. Aqui, convém ressaltar a origem do termo artéria – do Grego aér, ar, e térion, conducto, ou seja, vasos condutores de ar; e de veia – do verbo latino venire, ou seja, trazer o sangue de volta até o coração. Além disso, 2) o fígado teria a função primordial de produzir o sangue a partir dos alimentos absorvidos pelos intestinos, e que chegariam até o local por meio da veia porta.

Como pode ser observado na figura 1, haveria sangue no sistema venoso advindo do fígado, o qual serviria para a nutrição dos diversos tecidos; enquanto que no sistema arterial, haveria ar advindo do coração que carrearia “pneumas” responsáveis por nossas ações motoras e intelectuais.  Nessa teoria, o sangue era sintetizado no fígado e distribuído para o restante do corpo até ser “consumido” pela “carne” e, com isso, aquele órgão iniciava mais um ciclo na produção de sangue. Segundo tal ideia, produzir-se-ia cerca de 5 litros de sangue por minuto!

figura 1 jodonai
Figura 1: Em A, B, C e D observa-se como eram os modelos de Erasistratus, de Galeno, Colombo e Harvey, respectivamente, e como se modificaram com o passar do tempo. O fígado era tido como órgão central na produção de sangue até Colombo, quando Harvey modifica esse conceito e o coloca como uma região onde o sangue trespassa como outra qualquer. Fonte: Aird (2011).

Por outro lado, Cláudio Galeno (130 – 210), considerado o Príncipe dos Médicos, trouxe novos elementos para tamanha discussão. Ele adotou a mesma base de Erasistratus, mas descobriu por meio de experimentos que havia sangue dentro das artérias de animais. Galeno acreditava que o coração era a sede do calor inato do corpo e esse calor seria gerado quando ocorria o contato entre o sangue que fluía do ventrículo direito para o esquerdo (através de poros diminutos presentes no septo interventricular) com o ar que acabara de chegar dos pulmões. Galeno comparava o ventrículo esquerdo a um caldeirão quente e, no momento que as gotas de sangue tocassem tal ambiente, se evaporariam. Este vapor seria suficientemente forte para provocar a dilatação do coração – leia-se diástole ventricular – e também geraria um pneuma, um “espírito vital” que seria distribuído das artérias para todas as partes do corpo. Ao chegar ao encéfalo, seria então transformado no “espírito animal”, o qual sairia pelos nervos [considerados ocos]  e comandaria os movimentos e as sensações.

Nesse sistema de geração de calor, o coração não entraria em superaquecimento porque o sangue proveniente do fígado transportaria parte da temperatura ao passar pelo lado direito do coração, visando ser resfriado nos pulmões [isso explicaria o vapor exalado em dias frios]. Esta teoria Galênica permaneceu em vigor por mais de 13 séculos!, talvez porque existiriam elementos teosóficos em sua obra. Sua teoria explicava, por exemplo, a inteligência divina na criação do homem e, dessa forma, ninguém poderia contestar tais ideias sob pena de ser punido pela Igreja. Veja a figura 1B para observar os conceitos de Galeno.

Com Matteo Realdo Colombo (1516 – 1559), a ideia da produção de sangue no fígado permaneceu, assim como a de que haveria sangue no interior das artérias. No entanto, a teoria de que o sangue trespassaria por poros diminutos de um ventrículo para outro não foi sustentada. Colombo acreditava que o sangue passava das veias para as artérias no interior dos pulmões – uma revolução à época!, mas essa teoria da circulação pulmonar já havia inclusive sido descrita inicialmente por Ibn al-Nafis de Damasco (1210- 1290), o famoso Avicena, e depois por Miguel Servet (1511- 1553). Colombo continuou a sustentar que o sangue era absorvido pela “carne” e que o fígado produziria mais sangue, como pode ser observado na figura 1C. Esta sua descoberta foi extremamente importante para fundamentar as bases da teoria do Harvey.

William Harvey (1578 – 1657) teve forte influência italiana na elaboração de sua teoria. Seu mestre, Girolamo d’Acquapendente (1537-1619), havia descoberto as válvulas no interior das veias, porém desconhecia suas funções. Insatisfeito com os modelos que tentavam explicar a circulação sanguínea e, inconformado com a ideia de que o fígado seria capaz de produzir tanto sangue em tão pouco tempo, ele começou a idealizar sua teoria (na figura 1D, o sangue passa pelo fígado, mas não seria produzido lá). Harvey defendia que o sangue não seria absorvido pela “carne”, mas que esse sangue retornaria ao coração pelas veias. Para explicar isso, embasou-se na descoberta das válvulas venosas e demonstrou a teoria de que o sangue retornava ao coração a partir de um experimento utilizando-se o “torniquete no braço” (figura 2).

figura 2 jodonai
Figura 2: O famoso experimento do torniquete de Harvey. Na imagem superior notam-se os locais das valvas venosas ao longo das veias. Já na imagem inferior, mostra o vaso vazio, porque pressionou-se o vaso no ponto H e arrastou-se o dedo em direção ao ponto O, retirando o sangue da veia; se a pressão do ponto H for retirada, o sangue irá fluir em direção ao ponto O mas, ao contrário disso, se a pressão no ponto O for retirada, o sangue não poderá retornar ao ponto H, pois a valva não permitirá. Logo, o sangue tem um fluxo unidirecional das extremidades para o coração. Fonte: FUVEST (2007).

A teoria de Harvey estava totalmente fora do contexto da época e poucos anatomistas a aceitaram inicialmente, talvez porque não estavam convencidos de como o sangue passaria das artérias para as veias. Quando Harvey foi questionado sobre tal fato, explicou: “o sangue passa por vasos diminutos” – leia-se capilares, porém não havia como comprovar isso pois o microscópio ainda não havia sido inventado! A partir desse fato, diversos opositores começaram a criticar sua teoria, utilizando o termo “circulator”, o qual derivado do Latim, significaria algo como “charlatão”. Assim, deriva-se dessa palavra latina o termo “circulatório” o qual, inclusive, é utilizado equivocadamente pela Sociedade Brasileira de Anatomia (SBA), visto que na Terminologia Anatômica o termo mais adequado em Latim é Systema Cardiovasculare.

Se for realizada uma comparação etimológica entre os termos “circulatório” e “digestório”, por exemplo, notar-se-ia o seguinte: a palavra digestório deriva de digestorium – que significa local de distribuição ou digestão. Assim, a terminação ório (orium) significa local de ação, ou seja, uma região onde a ação da digestão acontece. Já o  termo “circulatório” não tem uma palavra latina correspondente, mas a palavra poderia ser a cisão da palavra círculo. Este seria o diminutivo latino de circus, ou arco, círculo; com o sufixo latino ório (orium); ou seja, uma região onde o círculo acontece. E, ainda mais, se for analisado que Harvey descreveu o movimento do sangue (Exercitatio anatomica de motu cordis et sanguinis in animalibus), qual seria o termo correto? “sanguetório”?!

A partir de tal divagação, surge o questionamento: até quando iremos desprestigiar a memória de Willian Harvey ao utilizarmos o termo que seus opositores utilizavam para zombar de sua teoria?!

 

Prof. Dr. Jodonai Barbosa da Silva

Universidade Federal do Piauí/ Campus Senador Helvídio Nunes de Barros

 

Referências:

AIRD, W. C. Discovery of the cardiovascular system: from Galen to William Harvey. J Thromb Haemost. v. 9, n. 1, p. 118–129, 2011.

DIO DIO, L. J. A. Nulla medicina sine anatomia. In: Tratado de anatomia sistêmica aplicada. 2ª ed. São Paulo: Atheneu; 2002.

SINGER, C. Uma breve história da anatomia e fisiologia desde os gregos até Harvey. Editora da UNICAMP, Campinas – SP, 1996.

PORTO, C. C.; RASSI, S.; REZENDE, J. M. O sistema circulatório de Galeno a Rigatto. Arq Bras Cardiol. v. 56, n. 1, p. 43- 50, 1991.

DONATELLI, M. C. O. F. Descartes e os médicos. Scientiæ Studia, v. 1, n. 3, p. 323-36, 2003.

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