
A história da Anatomia Humana é bastante marcante e repleta de glórias assim como revezes. Se por um lado os crimes anatômicos cometidos ao longo da história, os quais foram fomentados diante da falta de cadáveres, contribuíram de certa forma para um maior entendimento do corpo humano, certamente correspondem à mais importante mácula da ciência. Esta visão ressabiada e curiosa acerca da disciplina de Anatomia ainda hoje impregna o imaginário popular.
Na Grã-Bretanha do século XIX, o cenário das universidades médicas não era muito diferente do restante da Europa: padecia-se com a falta de cadáveres destinados aos estudos anatômicos e grande parte das dissecações era realizada em corpos de criminosos executados pelo Estado. O ambiente era propício para a ação de “ressurreicionistas” ou mesmo de indivíduos menos ávidos pelo árduo trabalho de saquear corpos recém sepultados de seus túmulos. É nesse ambiente anterior ao Ato Anatômico (1832) que surgiu os crimes anatômicos mais infames da história recente!
Em Edimburgo, Escócia, entram em cena os dois personagens principais deste texto. Em 1827 o irlandês Willian Hare acabara de se casar com uma viúva, até então dona de uma estalagem, e passara a administrar a pensão. Neste mesmo local conheceu outro irlandês, seu xará Willian Burke. Após falecimento de “Donald”, um velho pensionista que adoecera e morrera no local sem pagar sua dívida de 4 libras pela hospedagem, Hare ficou furioso e teve uma ideia macabra. Em parceria com Burke, ambos pilantras retiraram o corpo do pobre velho do necrotério e colocaram cascas de árvore em seu lugar no caixão. Os dois se dirigiram para a escola de medicina e foram calorosamente recebidos pelo assistente do Dr Robert Knox, famoso professor de Anatomia e médico-cirurgião local. Os dois incautos receberam instruções para retornar com o corpo à noite e, para sua surpresa, foram muito bem pagos pelo trabalho – recebendo 7 libras pelo corpo!
Interessantemente, não houve muitas perguntas sobre como o corpo foi obtido e, diante da alta lucratividade com a venda do corpo, a infame dupla começou a fabricar corpos a granel. A primeira vítima foi de outro inquilino doente, “Joseph”, um alcoólatra que teve seu destino apressado ao receber muito uísque de Burke e Hare. Após cair inconsciente, a vítima teve nariz e boca tapados com um pequeno travesseiro por Burke, enquanto seus membros permaneceram contidos por Hare. Mais uma vez, Dr Knox recebeu o corpo de bom grado e, diante de qualquer ausência de marcas de violência no corpo, tanto externamente como o observado pela autópsia, orientou a dupla a retornar com mais cadáveres.
Nos 11 meses que se passaram, a dupla de assassinos produziu mais 15 corpos com a mesmo método: muito uísque seguido de asfixia. Idosos, bêbados, prostitutas e até crianças eram alvo fácil para Burke e Hare, que passaram a ser cada vez mais ousados em suas investidas. Os corpos chegavam frescos ao laboratório de Dr Knox e, acredita-se, alguns de seus estudantes puderam até reconhecer o corpo de uma prostituta com a qual tiveram relações ocasionalmente. Algumas vítimas eram bastante conhecidas na cidade e, quando o corpo da “Senhora Docherty” foi encontrado no laboratório de Knox, o cerco policial se fechou em torno da dupla de serial killers.
Após um mês de investigações, com seu antigo parceiro Hare testemunhando a seu desfavor, Burke foi condenado à morte e seu corpo deveria ser “dissecado e anatomizado publicamente”. Além disso, seu esqueleto deveria ser “preservado para que a posteridade pudesse se lembrar de seus atrozes crimes”, conforme proferido em sentença pelo juiz.
Em 28 de janeiro de 1829, 25 mil pessoas aglomeraram-se para observar o enforcamento de William Burke enquanto bradavam para que também se fizesse justiça com William Hare e Robert Knox. Após a execução, o assassino teve seu corpo dissecado pelo Prof de Anatomia Alexander Monro Tertius. Durante este procedimento em praça pública, o qual foi acompanhado por milhares de curiosos, a pele do cadáver sumiu e, logo depois, vários livros foram encadernados com a pele de Burke. Um dos exemplares, assim como o próprio esqueleto de Burke, podem ser encontrados no Museu de Anatomia da Escola de Medicina de Edimburgo.
É curioso que Dr Knox, seja por cegueira voluntária ou negligência, não percebera a real origem dos cadáveres que andava recebendo em seu laboratório. Alguns possuíam cabeça e pés decepados, enquanto outros apresentavam sinais de hemorragia no nariz e orelhas. Ainda, o corpo nu da “atraente” prostituta Mary Peterson, armazenado em uma cuba de vidro transparente com álcool, não contribuiu para que sua reputação fosse poupada.
A saga dos infames assassinos virou filme em 2010 e o verbo “to burke” é comumente referido como uma forma de assassinar alguém por sufocamento.
Referências:
Roach, Mary. Curiosidade Mórbida. 1a Edição. São Paulo. Editora Paralela, 2015.
http://oaprendizverde.com.br/2017/06/21/serial-killers-william-burke-william-hare-assassinatos-em-west-port. Acesso em 27/11/2018.
http://www.oarquivo.com.br/variedades/curiosidades/2814-william-burke-e-william-haree-seus-cadaveres-frescos.html. Acesso em 27/11/2018.