As múmias bíblicas

Dr. Rodson Ricardo do Nascimento

José ordenou a seus servos, os médicos, que embalsamassem seu pai, e os médicos embalsamaram Israel. E quarenta dias foram completados por ele, assim como os dias de embalsamamento foram completados e os egípcios choraram sobre ele por setenta dias” (Gênesis 50, 2-3).

1. Introdução

Aqueles que me conhecem sabem da fascinação que tenho sobre o antigo Egito. Um erro comum entre os cristãos é pensar que as relações entre os egípcios e os israelitas foram sempre conflituosas. O livro de Gênesis termina com a morte no Egito. José teve sucesso nas terras do faraó e chegou, segundo o relato bíblico, a alcançar os mais altos postos da burocracia egípcia. Ele inclusive tinha um nome local: Zafenate-Paneia (“aquele que alimenta a terra dos vivos”). José tinha 30 anos de idade quando passou por essa transformação de vida (Gênesis 40, 45). O capítulo 50 narra a morte de dois patriarcas. Primeiro Jacó morre, depois José. O mais surpreendente é que ambos foram mumificados de acordo com o costume egípcio.

A mumificação egípcia

A religião ocupava um lugar especial na antiga cultura egípcia. Essa civilização acreditava na vida após a morte… Mas os egípcios da antiguidade não acreditavam numa existência da alma totalmente independente do corpo, como faziam os gregos. Por isso era necessário mumificar os cadáveres. Não somente humanos, mas também animais domésticos como cães e gatos. A mumificação ajudava a pessoa a alcançar a vida após a morte, pois acreditava-se que a vida post mortem só poderia existir se houvesse uma forma que o ka (alma) pudesse retomar após a morte. Os egípcios acreditavam que a única maneira de fazer isso era se o corpo fosse reconhecível. Por isso ele precisava ser preservado pelo maior tempo possível.

A mumificação era um processo complexo, caro e demorado. É por isso que os faraós começaram a construir suas tumbas durante suas vidas. A mumificação era feita principalmente para pessoas ricas, pois os mais pobres não podiam pagar pelo processo. Mas elas não precisavam: bastava que a múmia do faraó fosse preservada, visto que ela representava “o corpo” do Egito.

O famoso historiador grego Heródoto oferece uma das fontes mais detalhadas sobre tais assuntos; e menciona três métodos de embalsamamento. O primeiro, e mais caro, exigia a extração dos cérebros por meio de um gancho de ferro. O crânio vazio era posteriormente preenchido com especiarias. Em seguida, uma incisão era realizada com uma “pedra etíope” afiada que se acredita ser a obsidiana – uma rocha vulcânica preta e vítrea que pode ser lascada até o fio de uma navalha.

A obsidiana pode ser mais afiada e mais fina do que o bisturi de qualquer cirurgião. Os primeiros órgãos a serem removidos eram o trato intestinal superior e o pâncreas. Depois extraía-se o baço, os rins, a bexiga e mais partes do aparelho digestório; seguindo-se com o cólon, estômago e baço. Após o fígado retirava-se os pulmões. Apenas o coração era deixado na caixa torácica porque os egípcios acreditavam que quando o falecido se aproximasse de Osíris, o coração seria pesado.

A medicina não existia totalmente separada da religião. O embalsamador chefe era um sacerdote que poderia estar usando uma máscara de Anúbis. Este era o deus dos mortos com cabeça de chacal. Ele estava intimamente associado à mumificação e ao embalsamamento, por isso os sacerdotes usavam a sua máscara.

O processo de mumificação demorava cerca de setenta dias. Sacerdotes especiais trabalhavam como embalsamadores, tratando e envolvendo o corpo. Além de conhecer os rituais e orações corretos a serem realizados em várias etapas, os sacerdotes também precisavam de um conhecimento detalhado da Anatomia Humana.

A primeira etapa do processo consistia na remoção de todas as partes internas que poderiam se deteriorar rapidamente. O cérebro era removido inserindo-se cuidadosamente instrumentos especiais em forma de gancho pelas narinas,a fim de retirar pedaços de tecido cerebral. Era uma operação delicada que poderia facilmente desfigurar o rosto. Isso exigia pericia cirúrgica e sensibilidade estética.

Os embalsamadores então removiam os órgãos do abdome e do tórax através de um corte geralmente feito no lado esquerdo do abdome. Eles deixaram apenas o coração no lugar, acreditando ser o centro do ser e da inteligência de uma pessoa. Os demais órgãos eram preservados separadamente, com o estômago, fígado, pulmões e intestinos colocados em caixas ou jarros especiais hoje chamados de canopos. Estes eram enterrados com a múmia. Houve casos em que os órgãos eram tratados, embrulhados e recolocados no corpo. Mesmo assim, os canopos não utilizados continuaram a fazer parte do ritual do enterro.

Em seguida, os embalsamadores removiam toda a umidade do corpo. Isto era realizado cobrindo-se o corpo com natrão, um tipo de sal que tem grandes propriedades de secagem, e colocando pacotes adicionais de natrão dentro do corpo. Quando o corpo secava completamente, os embalsamadores removiam os pacotes internos e lavavam levemente o natrão do corpo. O resultado era uma forma humana muito seca, embora reconhecível. Para tornar a múmia ainda mais realista, as áreas afundadas do corpo eram preenchidas com linho e outros materiais, e olhos falsos eram adicionados- Essa é a origem da tanatopraxia.

Em seguida, começava-se o atamento. Cada múmia precisava de centenas de metros de linho. Os sacerdotes enrolavam cuidadosamente as longas tiras de linho ao redor do corpo, às vezes até envolvendo cada dedo da mão e do pé separadamente antes de envolver toda a mão ou pé. Para proteger os mortos de acidentes, amuletos eram colocados entre os panos e orações e palavras mágicas escritas em algumas das tiras de linho. Frequentemente, os sacerdotes colocavam uma máscara com o rosto da pessoa entre as camadas de bandagens na cabeça.

Após sucessivas camadas de linho e resina quente, o embalsamamento estava completo. Por fim, os sacerdotes enrolavam o último pano ou mortalha no lugar e prendiam-no com tiras de linho. A múmia estava completa. Como parte do funeral, os sacerdotes realizavam ritos religiosos especiais na entrada da tumba. A parte mais importante da cerimônia era chamada de “Abertura da Boca”. Um sacerdote tocava várias partes da múmia com um instrumento especial para “abrir” essas partes do corpo para os sentidos apreciados na vida e necessários na vida após a morte. Ao tocar o instrumento na boca, o morto agora podia falar e comer. Ele agora estava pronto para sua jornada após a morte. A múmia era colocada em seu caixão (ou caixões) na câmara mortuária e a entrada lacrada. É pouco provável que essa parte do processo tenha sido aplicado aos dois patriarcas.

2. A mumificação dos patriarcas

Após a morte, os faraós do Egito geralmente eram mumificados e enterrados em túmulos elaborados. Membros da nobreza e oficiais também recebiam frequentemente o mesmo tratamento e, ocasionalmente, pessoas comuns. Esse foi o caso de Zafenate-Paneia (José).

Seguindo o costume egípcio, José e seu pai foram embalsamados. A Torá não menciona como o embalsamamento foi realizado, quais partes do corpo foram removidas ou quais fluidos de embalsamamento foram usados. Na verdade, não dá nenhum detalhe, além do fato de que cada um foi embalsamado em separado.

Isso é surpreendente. O embalsamamento não era um costume hebreu; nenhum outro cadáver na Bíblia era submetido ao processo. Há pouca dúvida de que a única razão pela qual eles foram embalsamados foi porque viviam no Egito, mas todo o assunto é tratado de maneira muito casual: “Então José ordenou a seus servos, os médicos, que embalsamassem seu pai, e os médicos embalsamaram Israel” (50,2).

Uma vez embalsamado, o corpo de Jacó foi levado em uma procissão formal e pública para o local de sepultamento que ele havia reservado para si mesmo, para o túmulo da família em Hebron. A Torá também não dá detalhes sobre o esquife (sarcófago) que foi usado. Para chegar lá, eles tiveram que passar por terras cananéias. A procissão e os rituais de luto eram tão estranhos aos cananeus locais que eles os chamavam de “uma grande lamentação egípcia”. Não, podemos notar, uma ‘lamentação hebraica’. Os hebreus viveram entre os cananeus por várias gerações e seus costumes devem ter sido familiares para eles. Os cananeus podiam ver que não era um rito hebraico. O funeral, como o embalsamamento, era de caráter egípcio.

Gênesis 50:3: eles passaram quarenta dias fazendo isso, pois esse é o tempo necessário para o embalsamamento. E os egípcios choraram por ele setenta dias. Este número não corresponde exatamente a Heródoto ou ao historiador romano Diodoro. Heródoto escreveu que o período de embalsamamento durava 30 dias, enquanto Diodoro, levava-se 70 dias. Talvez no caso de Jacó, 40 dias foi o tempo necessário para o embalsamamento. Os 70 dias de luto também podem ter incluído os 40 dias de embalsamamento, enquanto os 30 dias adicionais eram necessários para completar o período de luto antes do início da jornada para Canaã.

A questão é: por que essa família hebraica, portadora de uma tradição religiosa única e exclusiva, que já tinha sepultura e costumes funerários próprios, enterraria seu patriarca segundo a tradição egípcia, e não a sua? O problema não deixou de ser percebido pelos rabinos. O Midrash (Bereshit Rabbah, 100) chega a sugerir que José foi punido por embalsamar seu pai! Sua vida útil atribuída teria sido encurtada. Mas isso não parece certo. No final do capítulo anterior, a Torá afirma que Jacó morreu depois de terminar de comandar seus filhos. Mais tarde, diz (50,12) que seus filhos fizeram o que lhes foi ordenado. Uma das ordens era enterrá-lo em Hebron. Presumivelmente, outro deveria embalsamá-lo. O embalsamamento pode ter sido desejo de Jacó, não de José.

Jacó sabia que era bastante natural que os estrangeiros adotassem os costumes locais. Ele também sabia que para ser aceito, para fazer parte da comunidade em que vivem, eles teriam que fazer coisas que não necessariamente fariam se ainda estivessem em sua própria sociedade.

Se Jacó ordenou a seus filhos que o embalsamassem, foi porque viu como era importante para a família se encaixar na sociedade egípcia. Os egípcios eram conhecidos por serem cautelosos e desconfiados em relação aos estrangeiros. Quando os irmãos chegaram ao Egito para comprar milho, José os convidou para uma refeição, mas os sentou separadamente. Quando Jacó chegou para morar no Egito, José os hospedou em Gósen, longe do principal centro populacional. Parece que os egípcios não gostavam de imigrantes; um fato que se tornou muito óbvio após a morte de José, quando os hebreus foram escravizados.

Jacó sabia que viver na diáspora envolvia assumir os costumes locais, adaptando-se à sociedade local.  Mas embora tivesse que se aculturar, não estava preparado para assimilar totalmente; quando ele morreu, ele fez questão de ser levado de volta para ser enterrado entre seus ancestrais.

Considerações finais

É interessante notar que, hoje em dia, a lei judaica determina que o embalsamamento é proibido, a menos que o corpo esteja sendo transportado além das fronteiras do estado, único caso em que é permitido. Viver com sucesso na diáspora é uma coisa delicada. Exige compromissos com a sociedade em que vivemos. Exige também fidelidade à cultura que nos dá a nossa identidade. Não é um ato de equilíbrio fácil. Ao embalsamar o pai, José e seus irmãos se tornaram os primeiros personagens bíblicos a dar o exemplo às comunidades da diáspora. Mas eles não seriam os últimos…

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