
Rodson Ricardo do Nascimento
Vivissecção é a prática de utilizar um ser, geralmente um animal vivo, com o propósito de realizar estudos científicos a partir da dissecação. Ou seja, utilizá-los para realizar testes laboratoriais (testes com drogas, cosméticos, produtos de limpeza e higiene), práticas médicas (treinamento cirúrgico, transplante de órgãos), experimentos de psicologia (privação materna, indução de estresse), experimentos armamentistas/militares (testes de armas químicas), testes de toxicidade alcoólica, tabaco, dissecação e muitos outros.
Há uma polêmica muito grande em relação a essa prática. Um dos primeiros textos contrários a ela foi escrito pelo escritor e teólogo anglicano C. S. Lewis (1898-1963) logo após a derrota dos nazistas. Desde então existe uma luta mundial para controlar, ou mesmo proibir, a vivissecção.
Uma das primeiras iniciativas para regulamentar atividades de pesquisa com animais de laboratório no Brasil surgiu no governo provisório (1930 a 1934) de Getúlio Vargas, em 10 de julho de 1934 com o Decreto nº. 24.645, que afirmava, no seu primeiro artigo, que “todos os animais existentes no país são tutelados pelo Estado”.
O decreto considerava como maus tratos aos animais “praticar ato de abuso ou crueldade em qualquer animal”; “manter animais em lugares anti-higiênicos ou que lhes impeçam a respiração, o movimento ou o descanso, ou que os privem de ar ou luz”; “golpear, ferir ou mutilar voluntariamente, qualquer órgão ou tecido de economia, exceto a castração, só para animais domésticos, ou operações outras praticadas em benefício exclusivo do animal e as exigidas para defesa do homem, ou no interesse da ciência”; “não dar morte rápida, livre de sofrimentos prolongados, a todo animal cujo extermínio seja necessário para consumo ou não”; “ministrar ensino a animais com maus tratos físicos”.
Em 1941, também por iniciativa de Getúlio Vargas – agora durante o Estado Novo – foi publicado o Decreto Lei 3.688, que tratava das leis das contravenções penais. No Capítulo VII – “Das Contravenções Relativas à Polícia de Costumes”, o subitem “Crueldade contra animais”, no seu artigo 64, especificava “Tratar animal com crueldade ou submetê-lo a trabalho excessivo: Pena – prisão simples, de 10 (dez) dias a 1 (um) mês, ou multa. § 1º Na mesma pena incorre aquele que, embora para fins didáticos ou científicos, realiza, em lugar público ou exposto ao público, experiência dolorosa ou cruel em animal vivo”.
O lado escuro da força
A verdade é que a vivissecção é a tênue fronteira das ciências naturais entre o conhecimento e a crueldade. Um exemplo disso encontra-se na vida do criador da “medicina experimental moderna” – o médico, filósofo e fisiologista francês Claude Bernard (1813 – 1878). As descobertas científicas de Bernard foram feitas por meio da vivissecção, da qual ele era o principal proponente na Europa na época. Bernard parece representar a encarnação de tudo o que C.S. Lewis criticava na ciência moderna, que segundo ele, se consolidou no nazismo. Para Claude Bernard:
“O fisiologista não é um homem comum. Ele é um homem culto, um homem possuído e absorvido por uma ideia científica. Ele não ouve os gritos de dor dos animais. Ele está cego para o sangue que flui. Ele não vê nada além de sua ideia e organismos que lhe escondem os segredos que está decidido a descobrir”.
As frases “Ele não ouve os gritos de dor dos animais. Ele está cego para o sangue que flui” não eram apenas retórica. Bernard praticava vivissecção com enorme prazer, para desgosto de sua esposa e filhas, que haviam voltado para casa ao descobrir que ele havia vivisseccionado seu próprio cachorro. O casal se separou oficialmente em 1869 e sua esposa passou a fazer uma campanha ativa contra a prática da vivissecção.
Sua esposa e filhas não foram as únicas a ficarem enojadas com os experimentos com animais de Bernard. O médico-cientista George Hoggan passou quatro meses observando e trabalhando no laboratório de Bernard e foi um dos poucos autores contemporâneos a narrar o que acontecia lá. Posteriormente, ele foi levado a escrever que suas experiências no laboratório de Bernard o haviam deixado “preparado para ver não apenas a ciência, mas até a humanidade, perecer, em vez de recorrer a tais meios para salvá-la”.
