
A pintura a óleo sobre tela de Rembrandt van Rijn intitulada “Lição de Anatomia do Dr. Nicolaes Tulp” (1632) é considerada uma verdadeira obra-prima. Tendo trabalhado o chiaroscuro, o qual enfatiza principalmente os efeitos de luz e sombra, o pintor privilegiou o retrato em grupo. Basicamente, Dr. Tulp – um praelector anatomiae – é retratado demonstrando a dissecação do antebraço de um criminoso executado para o grêmio de cirurgiões de Amsterdã. Tratava-se do cadáver de Adriaen Adriaensz, também conhecido por Aris Kindt, um criminoso com longa ficha criminal que foi enforcado por roubar uma capa mediante grande violência contra a vítima no ano de 1632.
A representação do antebraço esquerdo do cadáver é alvo de grande debate por, supostamente, conter erros anatômicos na origem dos músculos flexores do antebraço. Por exemplo, ao se observar com cautela a imagem, sabe-se que o músculo sustentado pelo fórceps é o flexor superficial dos dedos, com o flexor profundo dos dedos sendo visualizado logo abaixo. Segundo Mellick (2007), ambos os músculos teriam origem retratada no epicôndilo lateral – obviamente um erro! Contudo, Ijpma et al (2008) acreditam que a pintura de Rembrandt é fidedigna pois o antebraço do cadáver estava estendido e supinado, com a mão posicionada na região da virilha. O epicôndilo medial do úmero estaria apontado para o corpo e, no caso, o epicôndilo lateral não estaria visível. Também debate-se sobre a possibilidade de um antebraço separado ter sido posicionado ao lado do corpo, e erroneamente interpretado como o antebraço esquerdo. Ainda, outros erros poderiam ser evidenciados entre a pintura e dissecações (Ijpma et al., 2008).
A pintura foi restaurada entre 1996-1998, fato que revelou muitos detalhes sobre as técnicas de pintura de Rembrandt. A sequência de pintura dos personagens e o pedaço de papel manuseado por um dos cirurgiões (Figura 1), por exemplo, puderam ser detalhadamente estudados.

É importante recordarmo-nos que no século XVII as dissecações eram abertas ao público e ocorriam no inverno, a fim de preservar os corpos, tendo duração de vários dias. Além disso, envolviam inicialmente as vísceras torácicas e abdominais, mais perecíveis, para então se prosseguir com as extremidades. Na pintura de Rembrandt, apenas o antebraço encontrava-se dissecado, o que indica que a “Lição de Anatomia do Dr. Nicolaes Tulp” representa uma interpretação de uma aula de anatomia clássica, e não necessariamente um retrato fiel desta lição. Ainda, a própria apresentação de Andreas Vesalius em De Humani Corpori Fabrica (figura 2) parece ter influenciado a posição do Dr. Tulp durante os esboços da pintura. Nesta obra clássica da Anatomia (e já apresentada neste site), Vesalius foi ilustrado expondo justamente os músculos flexores do antebraço!

Apesar de ser considerada a mais famosa, existem diversas pinturas sobre dissecações e aulas de anatomia, notadamente na Holanda, e que evidenciam uma época de ouro para as artes nos países baixos.
Geralmente, os pintores recebiam comissões para retratar o praelector anatomiae, o qual era tido como uma figura muito importante na sociedade e que frequentemente era designado como prefeito ou para cargos de liderança da cidade. A primeira pintura conhecida sobre uma lição de anatomia data de 1603: “A Lição de Anatomia do Dr. Sebastiaen Egbertsz de VriJ”, de Aert Pietersz (figura 3). Dr. Egbertsz é a figura central na pintura e encontra-se manipulando uma tesoura com um cadáver intacto logo a sua frente. Nessa obra, os cirurgiões retratados encontram-se de frente para o espectador. Quando a pintura ficou pronta, vários desses cirurgiões haviam perecido devido uma epidemia de praga em Amsterdã (Baljet, 2000).

Interessantemente, a aula de Dr. Egbertsz também foi tema para outra pintura, desta vez de autor desconhecido, possivemente elaborada por Nicolaes Eliasz ou Werner van de Valckert (Baljet, 2000). Nesta pintura, o professor demonstra osteologia para um grupo de seis estudantes por meio de um esqueleto (figura 4).

Já uma demonstração do crânio foi retratada em (1625-1626) por Nicolaes Eliasz em “Lição de Anatomia Dr. Johan Fonteijn” (figura 5). A pintura original era muito maior e retratava mais pessoas, mas foi bastante danificada pelo fogo em um incêndio em 1723 (Baljet, 2000).

O próprio Rembrandt, anos após ter concluído “Lição de Anatomia de Dr. Tulp”, retratou “Lição de Anatomia de Dr. Johannes Deijman” (1656) (figura 6). Nesta obra, o praelector apresentava apenas as mãos evidenciadas e demonstrava as meninges numa dissecção de cérebro por meio de um fórceps. O assistente de Dr. Johannes Deijman, Gijsbert Calkoen, acompanhava a dissecação portando a calota craniana extraída do cadáver. A imagem apenas demonstra um fragmento da pintura original, a qual continha mais pessoas e apresentava o teatro anatômico do local (Baljet, 2000).

Outras obras de destaque estão expostas no Museu de História de Amsterdã e incluem a “Lição de Anatomia do Prof. Frederik Ruijsch”, de Adriaen Backer (1670); “Lição de Anatomia do Prof. Frederik Ruijsch”, de Johan van Neck (1683) e “Lição de Anatomia de Dr. Willem Roell, de Cornelis Troost (1728), entre outras. Definitivamente, a Holanda é um destino fundamental para os amantes da arte e da anatomia…
Dr Bento J Abreu
Editor do site, professor, pesquisador e interessado em assuntos atuais.
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Referências:
Baljet B. The painted Amsterdam anatomy lessons: anatomy performances in dissecting rooms? Ann Anat. 2000 Jan;182(1):3-11.
The anatomy lesson of Dr. Nicolaes Tulp by Rembrandt (1632): a comparison of the painting with a dissected left forearm of a Dutch male cadaver. J. Hand Surg. [Am]. 2006; 31: 882–91.
, , , .IJpma FF, van de Graaf RC, Meek MF, Nicolai JP, van Gulik TM. The anatomy lesson of Dr. NicolaesTulp painted by Rembrandt in 1632. ANZ J Surg. 2008 Dec;78(12):1059-61.
Mellick S. The anatomy lesson of Dr. Nicolaes Tulp painted by Rembrandt in 1632. ANZ J Surg. 2009 Jun;79(6):496; author reply 496-7.